Bastidores

Inventar o real, inventar a si mesmo

15 / setembro / 2016

Suelen Lopes*

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Baseado em fatos reais, de Delphine de Vigan, é um dos livros em que mais gostei de trabalhar desde que entrei na Intrínseca. A autora, que ficou conhecida por suas obras com traços autobiográficos, se destacou na cena literária francesa principalmente depois de Rien ne s’oppose à la nuit, escrito após o suicídio da mãe e lançado em 2011. No romance, Delphine evoca doces lembranças ao mesmo tempo em que conta como a mãe, que era bipolar, pouco a pouco sucumbiu ao delírio e à loucura diante das filhas, e revela segredos familiares perturbadores.

Rien ne s’oppose à la nuit alcançou um estrondoso sucesso na França, e após quatro anos de silêncio De Vigan lançou Baseado em fatos reais. Logo nas primeiras páginas, a narradora, que também se chama Delphine, se vê diante da temível pergunta: o que vem depois de um texto pessoal que comoveu tantos leitores? Para Delphine, a resposta era a inércia, a fragilidade, o isolamento, a depressão e o bloqueio criativo. Delphine de Vigan e Delphine, a narradora do livro, claramente têm inúmeros pontos em comum. Coincidência? É provável que não.

untitledEm meio a esse cenário de vulnerabilidade, a narradora conhece a ghost-writer L., uma mulher sofisticada, confiante, feminina, carismática e atraente. Tudo o que Delphine sempre desejou ser. A amizade, no entanto, se torna cada vez mais possessiva. L. tem um passado obscuro e entra de modo insidioso na vida da escritora, que encontra na relação uma saída para superar o bloqueio criativo. L. parece ser a amiga perfeita, sempre disponível, mas logo passa a interferir nos aspectos mais íntimos da vida de Delphine. A conexão entre as duas parece inacreditável — e bastante perturbadora. L. tenta fragilizar e manipular a amiga, o que estabelece um clima sombrio e de suspense ao longo da história.

No início, o livro remete a uma narrativa pessoal, mas então se transforma em um thriller psicológico que joga com os códigos da autoficção, questiona o fazer literário, o fascínio da nossa sociedade por narrativas baseadas em fatos reais — seja na literatura, no cinema ou na TV —, e as aparentes dicotomias com as quais costumamos nos deparar, como público e privado, razão e loucura, normalidade e anormalidade, verdade e mentira. De Vigan lança muitas pistas falsas (ou não, quem sabe?) para estabelecer uma atmosfera confessional que coloca em xeque a fronteira entre real e ficção.

Baseado em fatos reais traz uma narradora-autora de contornos bastante nebulosos, cria uma esfera ficcional do que é real e também do próprio eu. Não é por falar de sua vida nos livros que as pessoas conhecem a verdadeira Delphine de Vigan. Na verdade, são momentos recortados e colocados em evidência. Delphine brilha nesse palco em que vida e literatura não se separam por completo. O interesse está no movimento de construção da narrativa, de costurá-la e inventá-la, mais do que dizer se uma coisa de fato aconteceu ou não.

A autora parece partir da própria história e de suas questões mais íntimas para dar outro significado à dor. Na vida real ela tem um namorado que se chama François e é crítico literário, como no livro? Sim. Tem dois filhos? Sim. Os filhos se chamam Louise e Paul como na obra? Não. Ela enfrentou crises de depressão? Talvez. L. realmente existiu em sua vida? Delphine de Vigan faz questão de responder que, de uma forma ou de outra, sim. Qual parte é construção? O que não é? O interessante é perceber que talvez essas não sejam as perguntas mais relevantes. Baseado em fatos reais recorre à desconstrução dos limites entre real e ficção acreditando que vida e linguagem caminham lado a lado para possibilitar as vivências em toda a sua humanidade, com o que elas trazem de bom e de ruim. Para mim é sempre maravilhoso quando encontro um livro que me toca a ponto de fazer com que eu queira me entender melhor e me reinventar. Espero de verdade que vocês gostem de lê-lo tanto quanto eu gostei de trabalhar nele.

>> Leia um trecho de Baseado em fatos reais

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*Suelen Lopes é editora assistente no setor de ficção estrangeira da Intrínseca. Gosta de chá, cachorros e francês, e acredita que dar voz à vulnerabilidade humana ainda vai mudar o mundo.

Comentários

Uma resposta para “Inventar o real, inventar a si mesmo

  1. Esse livro foi uma grande surpresa esse ano! Eu não consegui largar mesmo ele sendo tão intrigante! Espero de coração que a editora publique outros livros da Delphine, especialmente o livro “Rien ne s’oppose à la nuit”, que é bastante bastante citado no livro! 😀

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