Fernando Scheller

Carta de amor em segunda pessoa

17 / agosto / 2016

Eu quero lembrar. Aquela quinta, ou terça, ou segunda. Puxo pela memória, ela me trai. Uma, duas, dezenas de vezes. Preciso reconstituir a última vez, o apelo final, a chance desperdiçada. Se conseguir recuperar aquela noite, do jeito exato, e o teu olhar, talvez eu entenda. Recordo milhares de estrelas apagadas pelas luzes da cidade. De novo, o teu olhar. A voz baixa, tentando esconder a mágoa. Pausas entre as palavras para não perder o controle. E, de repente, um apagão.

Teu amor por mim sumiu dos teus olhos. Aquela luz quente, que queimava com um misto de dor e fascinação, desapareceu. Não estava mais ali, tinha desistido, minguado feito brasa de fogueira apagada pelo vento da madrugada. Não soube naquele momento o que o fim daquela luz significava, embora tenha sentido que algo mudava. Como se o tempo subitamente tivesse virado e as folhas começassem a cair das árvores bem antes da chegada do outono.

Tenho certeza de que era noite. Devia ser maio ou junho, tu usavas um casaco cinza meio puído que te caía bem. Nunca te perguntei, mas agora tenho curiosidade em saber se era o teu preferido. Interesso-me por tudo sobre ti, até recomponho as histórias de tuas roupas velhas. Preciso rearranjar, pedacinho por pedacinho, o mosaico do fim desse sentimento, que, sem aviso, morreu. Ali, na minha frente, fora do meu controle.

Quando penso bem, apagar o que brilhava tão forte não deve ter sido tarefa fácil. O amor é algo que vai embora aos poucos, é impossível matá-lo de um golpe só. Ninguém teria tanto talento. Um sorriso sem jeito, meio triste, tomou o lugar daquele riso fácil, o mesmo que agora procuro, procuro, mas não consigo encontrar. Foi tudo muito rápido, não percebi os sinais. Perdoa-me, amar nunca me foi algo natural.

A luz da minha varanda, essa vista das árvores que tu admiravas, tudo me faz lembrar de ti. Noite de inverno, dia de festa. Considerando a época do ano, não era meu aniversário nem o teu. Muita gente aqui, taças que tilintavam, copos cheios, comida farta. Sempre havia uma ocasião. Alimentava-me da minha disposição em encontrar gente nova, experimentar aquela sensação de adrenalina do novo, êxtase. Então descarto tudo e volto ao começo, repetindo o processo.

Uma música de que tu gostavas tocava ao fundo. Tu te esgueiraste, afastando-te como um caranguejo que se esconde de um predador. Precisavas recuar, deixar-te levar pelo instinto de proteção. Sorriso já apagadinho, um bom disfarce, trinta segundos de conversa com um aperto na mão de outro, beijinho em quem acabava de chegar. Em direção à porta, esqueceste o cachecol ou o deixaste como espólio da retirada repentina, baixa em uma batalha dada como perdida.

E nunca mais te vi. Simples assim: todas as comunicações cortadas em um planeta em que é quase impossível viver desconectado. Ouvir palavras vazias de ti, que sempre trouxe significado a tudo, doeu-me mais do que o teu completo silêncio. Por favor, entendas, também preciso me preservar. Não quero alimentar-me de tua frieza, prefiro me aquecer na memória cálida, quase quente, e agradecer-te.

Acompanho, juntando informações com um amigo aqui, outro ali, o que acontece contigo. Viagens, realizações, pequenas felicidades, casamento. Todo mundo diz que tu completas o que começas. E que sempre fazes tudo bem. Não consigo sequer desejar-te para mim. Acho que descobri o verdadeiro amor assim, com atraso. E tudo o que consigo fazer é te desejar o melhor.

Tu nunca receberás esta carta, ela é só uma cápsula do meu tempo pessoal. Ao escrever estas palavras de amor, sinto-me menos impotente. Não ousaria incomodar-te, o tempo passou, preciso aceitar a derrota. De alguma forma, estas palavras trazem um pouco do teu calor de volta. É a brisa quente que entra na janela. Não vai durar. Fecho os olhos e sinto que estás aqui.

Comentários

Uma resposta para “Carta de amor em segunda pessoa

  1. Palavras simplesmente incríveis. É fascinante o quanto um texto pode trazer a tona tantos sentimentos secretos, tantas sensações que nunca existiram, tantas recordações que já se foram, algumas coisas nos tocam tão profundamente que só podemos desejar o melhor <3

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