Bastidores

Um banho de futebol

13 / julho / 2016

* Por Pedro Staite

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A ciência tem tarefas mais importantes a desempenhar, mas, se estivesse com tempo e ideias inúteis de sobra, comprovaria que eu sou um caso excepcional do futebol. Excepcionalmente lamentável. Minha coordenação tem lacunas constrangedoras, já perdi o fôlego uma vez jogando Banco Imobiliário (mesmo tendo ficado seis rodadas seguidas descansando na cadeia) e não tenho aquela gana animal para executar desarmes no ponto futuro. Na verdade, às vezes me falta gana até para atravessar a rua.

A introdução é só para deixar bem claro que eu sou péssimo em futebol. É imprescindível que a raça humana nunca dependa dos meus gols.

Mas, por algum motivo, adoro futebol. A vida tem disso mesmo, é sempre muito revelador acompanhar alguém fazendo alguma coisa que você não sabe fazer. É por isso que eu adoro reality shows de culinária, shows de rock e pessoas que enriquecem.

Um dos livros com os quais entrei em contato nos últimos meses aqui na Intrínseca foi o Liderança, de Sir Alex Ferguson, treinador escocês que fez história no Manchester United. A obra foi produzida pela Luana Luz, uma fonte cristalina de conhecimento a um braço meu de distância. Fiz uma das revisões do livro: a ideia era verificar termos futebolísticos, porque, embora a obra discorra sobre liderança e as experiências de gestão do autor, o estofo é todo envolto no relvado. É recheado de bastidores, números e causos de futebol, e isso é lindo.

untitledAlex Ferguson foi técnico do Manchester United por quase 27 anos, ou 1.500 jogos, e o que ele tem de títulos eu não chego a ter de dentes (sim, ele conseguiu a proeza de ganhar mais de 32 títulos no Manchester, e eu tirei os sisos). Isso sem contar a carreira de sucesso que ele já tinha na Escócia, onde treinou a seleção do país e o Aberdeen na década de 1980 — um raro momento no século passado em que algum time ofuscou o brilho dos gigantes Celtic e Rangers. Dos quatro títulos que o Aberdeen tem em sua história no Campeonato Escocês, Ferguson conquistou três. O pessoal de lá deve amar muito o cara. Ainda mais se esmagarmos os números para observarmos suas entranhas:

— O Campeonato Escocês já teve 121 edições.

— O Celtic e o Rangers ganharam, juntos, 101 vezes. (Sim, só há 16,53% de chances de qualquer outro time ganhar o Escocesão. Não sei de onde os torcedores tiram esperança no início de cada temporada.)

— O maior intervalo NA HISTÓRIA sem título de um dos dois foi de apenas três anos (da temporada 1982-83 até a 1984-85). Ali, o Aberdeen de Ferguson conseguiu dois títulos. Na verdade, depois disso, nenhum outro time foi campeão, só o Celtic e o Rangers.

Ou seja, Sir Alex Ferguson sempre pareceu saber o que estava fazendo. E muitas das estratégias que comprovam isso estão nos causos de Liderança.

 

O banho de banheira que trouxe Cantona

Em 1992, depois de um jogo contra o Leeds, alguns jogadores do Manchester United fizeram algo que a maioria das pessoas vão morrer sem fazer (como se jogar no Manchester United já não fosse o suficiente): tomaram um banho de banheira com o chefe. É por isso que o futebol é maravilhoso; isso nunca aconteceria num escritório de arquitetura.

Durante o banho pós-jogo, Steve Bruce e Gary Pallister, dois pilares do time na época, contaram para Ferguson que o Leeds tinha um atacante francês muito perigoso chamado Éric Cantona. “De algum modo, esses comentários plantaram uma semente que pouco depois nos levou a comprar o atacante francês”, conta Ferguson no livro.

Foi um banho de banheira abençoado: Cantona fez mais de oitenta gols e ajudou o time a ganhar nove títulos nos quatro anos seguintes. Portanto, a moral do parágrafo é a seguinte: escute os conselhos de quem toma banho com você.

 

O mesmo Cantona e a bicuda de kung fu

O francês sempre foi conhecido por ter um pavio inexistente. Em um jogo inesquecível contra o Crystal Palace, Cantona se irritou com um torcedor do time adversário. Em vez de dizer “Meu senhor, suas ofensas são injustificadas e não me agradam, por favor, pare com a bravata”, Cantona correu até o cara e desferiu uma VOADORA nele (e ainda tentou dar uns socos, eu vi no YouTube).

A completa falta de verniz social do francês lhe rendeu uma suspensão de oito meses. O sábio Ferguson, depois das broncas que devem ter balançado o Paraíso e o Inferno, reforçou a importância da lealdade no time: “Foi natural ele se sentir isolado e esquecido. Eu me esforcei muito para que soubesse que nos importávamos com ele, e, no fim das contas, quando ele estava prestes a se transferir para a Itália, nossa lealdade o fez ficar no Manchester United.”

 

Bons, bonitos, ricos e pelo menos um sem caspa (segundo o anúncio)

Cristiano Ronaldo e David Beckham são duas traduções do sucesso completo no futebol. Estão entre os melhores jogadores da história, são as coisas mais bonitas em que já pus os olhos, viraram chamarizes das marcas mais conceituadas do planeta e não entram no cheque especial desde o início da década de 1990. À semelhança de Sérgio Chapelin em frente ao telão do Globo Repórter, me pergunto: “Qual é o segredo deles?”

(Evidentemente várias pessoas talentosas seguem os mesmos caminhos, mas acabam não vicejando na profissão, então devemos complementar com o fator “sorte” tudo o que vier escrito em seguida.)

Ferguson tem algumas respostas sobre Cristiano Ronaldo: “Ele tinha uma verdadeira ânsia de se tornar o melhor jogador do mundo e estava determinado a alcançar tal objetivo. Também tinha um cuidado tremendo com a alimentação, um hábito anterior à sua mudança para a Inglaterra (…) [Cristiano Ronaldo] Não chega nem perto de bebidas alcoólicas.” Se eu jogasse bem assim, também ficaria longe de bebidas alcoólicas. Mas eu — esquisito, beberrão, pereba, usuário do xampu do anúncio dele e simpático — sou o completo oposto do Cristiano Ronaldo.

Beckham, que chegou molequinho ao Manchester United, também é conhecido por sua dedicação febril. Nas palavras do autor de Liderança, “[ele] também era extraordinário. Quando se juntou a nós, morava em um alojamento, e não treinava apenas de manhã e à tarde, mas também aparecia à noite para praticar com os meninos da escolinha”. Poucos são os que usam tão bem a sorte a favor.

 

Futebol não é só bola

E isso é uma das razões que tornam Liderança tão divertido. No livro a gente acompanha, por exemplo, como o Manchester (que, embora bem estruturado, não conta com o macete de dinheiro infinito que Chelsea, Real Madrid e Manchester City têm) lutou para contratar vários craques. Um spoiler da vida real: em várias ocasiões, Ferguson levou a pior. O Lucas, por exemplo, que jogou no São Paulo (no Google, é o segundo Lucas que aparece na caixa de buscas. O primeiro é o Lucas Lucco), quase foi para o Manchester, mas acabou preferindo o dinheiro infinito do Paris Saint-Germain. Esse jogo de xadrez chamado “janela de transferência junto com muito time rico por perto” é esmiuçado várias vezes, e sempre dá uma sensação de “ooolha isso, gente, eu não sabia!”.

Brigas de bastidores, reviravoltas impossíveis dentro de campo, rivalidades e lealdades para uma vida inteira, as impressões sobre os melhores jogadores da história… A vida de Sir Alex Ferguson no Manchester United é um recorte não só de uma lenda da bola, como também da bola em si. É ao mesmo tempo um relato autobiográfico e uma biografia do futebol. Uma homenagem ao futebol, para falar a verdade.

>> Leia um trecho de Liderança

 

Pedro Staite é editor-assistente de livros estrangeiros da Intrínseca e é uma lenda do handebol amador, pena que a editora não tem livros sobre esse esporte. Escreveu um livro chamado Memorial leve, que não tem nada a ver com futebol (nem handebol, claro).

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