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Payasa e os protestos: como uma personagem fictícia me levou a conhecer Los Angeles

1 / julho / 2016

Por Ryan Gattis*

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Eu não tinha me programado para escrever um livro sobre os protesto de 1992 em Los Angeles. Inclusive, se alguém me falasse que eu escreveria um livro com 17 narradores em primeira pessoa, todos surgindo ao longo dos seis dias de conflitos — de 29 de abril a 4 de maio —, eu teria ficado apavorado diante da enormidade da empreitada e talvez desistisse antes mesmo de começar.

Tudo começou com Payasa. A garota envolvida com gangues crescendo na cidade de Lynwood se revelou um fruto tão persistente de minha imaginação que eu não tinha como tirá-la da cabeça. Na minha experiência, não é comum uma personagem fictícia insistir em existir. É muito raro, e, quando acontece, sei que tenho que segui-la aonde quer que ela vá, ou posso perder aquela voz para sempre.

Talvez eu devesse explicar como ela surgiu.

Em 2011, eu estava trabalhando com a UGLAR (Unified Group of L.A. Residents, União de Residentes de Los Angeles, um grupo de artistas qualificados criando um painel da cidade de Los Angeles) em uma espécie de estágio. Tinha conhecido os integrantes alguns meses antes, e a química foi instantânea. Não demorou para me convidarem, um autor, a participar do grupo. Aceitei.

Todos concordamos que seria um experimento, mas, antes que pudéssemos pensar em como combinar as aptidões artísticas de cada um, eu precisava entender o que eles faziam. Então carreguei tinta para os murais, documentei muros e ajudei com a limpeza. Durante o processo, perambulei por áreas da cidade que nunca tinha visto e nem sequer sabia que existia, já que cresci no Colorado, bem longe dali: Lincoln Heights, Highland Park, Lynwood e muitas outras. E aprendi uma coisa: se podemos chamar Nova York de uma cidade fria e vertical, Los Angeles é quente e horizontal. É enorme e sempre parece prestes a entrar em erupção.

Ao visitar essas áreas, conheci o temperamento e a textura da cidade. Comecei a entender suas diversas culturas e sua população. Conversei com os sem-teto e os desempregados, mas as conversas que mais me atraíam eram com antigos membros de gangue, a maioria de descendência latina. Eles tinham uma visão da cidade diferente de tudo o que eu já tinha ouvido falar, e seu sotaque atiçou meu cérebro.

Eu tenho memória auditiva. Quando as pessoas falam, já visualizo como suas falas se traduziriam na escrita. Sou um “homem das palavras”, como diria Tom Waits. Sou fascinado por gírias. Mapeio estruturas de sentenças mentalmente, enquanto escuto. Visualizo o ritmo da fala e o padrão do discurso, de forma a poder dar vida às palavras no papel. Tijolo por tijolo, essas conversas inocentes sobre tudo, de tatuagens aos deliciosos tacos, foram construindo a fundação de Payasa. Quando entendi como eles falavam, entendi como ela falaria. E foi assim que ela ganhou forma e estilo.

Quando contei ao grupo de ex-membros que estava contemplando escrever sobre uma mulher numa gangue, eles se mostraram resistentes. Disseram que mulheres não se envolviam no cotidiano das gangues da forma que eu imaginava. Isso foi um golpe esmagador no meu processo criativo. Tentei desistir de Payasa em prol da autenticidade, mas ela não permitiu que eu a mandasse embora.

Quando eu estava no ponto de ônibus esperando pelo 720, ela começava a soltar comentários sobre o céu, sobre a pessoa parada ao meu lado ou sobre o que ela queria da vida. Tomei nota de tudo. Isso se estendeu durante dias. Quando vi que ela não ia embora, soube que devia alguma coisa para salvá-la. Tinha que bolar um enredo que desse a ela a liberdade não apenas de ser parte de uma gangue de Los Angeles, mas de criar o próprio destino.

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Os protestos de 1992 eram o enredo.

Quando finalmente compreendi isso, sabia que precisava escrever a história dela. Veio aos bocados: dois, três ou até quatro capítulos por dia. A voz dela fluía, e fiz o possível para digitar tão rápido quanto podia ouvir. Em uma semana, tinha terminado.

Levei a história dela de volta para os camaradas com quem sempre conversava, certos de que eles pensariam que não teria como ela existir no mundo deles, 23 anos antes, e, quando terminei de contar os pontos principais, me preparei para o ataque. Em vez disso, ouvi: “Achei maneiro!” e, o melhor de todos os comentários: “Uau, cara, curti a mina.”

Descobri, aliviado, que isso não apenas a tornava real, mas também acabava com minha maior preocupação. Quando escrevo a respeito de algo distante de minha própria cultura, sinto a necessidade de provar às pessoas que me relatam as coisas que posso fazê-lo de forma honrada e respeitosa, que, não importa a dificuldade, vou me esforçar para escrever cada detalhe o mais verossímil possível. A aprovação deles significava que minha Payasa se encaixava bem no mundo que eles conheciam.

Naquela noite, fui embora orgulhoso, mas, quando cheguei em casa, entendi uma coisa importante:  o livro, seja lá o que fosse se tornar, não era mais só sobre Payasa.

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O livro tinha se tornado sobre os protestos, e havia uma responsabilidade imensa de não errar ao escrever sobre aquela época. Só havia uma solução: pesquisar. Assisti a cada documentário que encontrei. Mergulhei nos arquivos de microfilme do L.A. Times. Li todos os livros em que consegui botar as mãos, como Twilight: Los Angeles, 1992, de Anna Deveare Smith, e Fires & Furies, do Major General James Delk. Enquanto me envolvia com esses dois livros, descobri uma coisa muito interessante: muito se escreveu sobre os protestos, e em muitos meios diferentes, mas nunca na ficção — ou seja, nunca no meio que mais exploraria a natureza do evento e geraria empatia. Inclusive, os últimos capítulos de The Tattooed Soldier, de Héctor Tobar, são o único registro do universo da ficção de que me lembro agora, embora eu tenha certeza de que existem mais.

211319todosenvolvidosIsso tudo me deu coragem para escrever uma história mais ampla. Assisti várias vezes aos noticiários da época no YouTube, até encontrei algumas horas de filmagem sem edição que alguém tinha disponibilizado. E, o mais importante, sempre conversava com pessoas que conheciam a cidade melhor do que eu. Com elas, conseguia descobrir a sensação de estar em meio aos acontecimentos, o que mais as assustava a respeito dos protestos e o que elas mais queriam que acontecesse, na época. Com a generosidade delas, pude entender não apenas o estado psicológico da época, mas o estado psicológico de alguém que sobreviveu.

E, com toda essa pesquisa, os fatos foram surgindo. Fatos tão pesados que não apenas faziam pressão no meu coração, mas também me inspiravam a explorá-los através dos olhos de novos personagens. Descobri a existência dos Vikings — um grupo, que na época era secreto, dentro do Departamento de  Polícia de Los Angeles, proclamado por um juiz como uma “gangue neonazista defensora da supremacia branca”. Descobri que os médicos do SEAL da Marinha fizeram treinamento de combate junto ao Corpo de Bombeiros de Los Angeles devido à enorme quantidade de feridos na época. Descobri mais sobre Koreatown, onde imigrantes e nativos se uniram para defender suas propriedades e uns aos outros de um jeito que me lembrou Paul Revere. Descobri que os assassinatos que ocorreram em áreas afastadas dos protestos não foram considerados relacionados às revoltas, mesmo que talvez tenham acontecido por causa da falta de policiamento e de atendimento emergencial. Descobri sobre a existência dos necrotérios portáteis, veículos refrigerados usados para abrigar temporariamente os mortos. Descobri que mais de 3 mil armas foram roubadas durante os protestos e que, até hoje, apenas uma pequena parcela foi recuperada.

Ao longo dessa jornada, meus olhos se abriram para a história recente de Los Angeles, com sua profundidade e suas dificuldades, e acho que, ao menos em parte, descobri uma cidade escondida por baixo da que eu já conhecia. O que vi emergir da pesquisa que fiz foi uma cidade nova, que, ao mesmo tempo, explicava e obscurecia o presente, colorindo com tons de cinza coisas que antes pareciam preto e branco. E isso nunca teria acontecido sem a insistência de Payasa em existir no papel. Sem ela, não haveria livro.

Foi ela quem deu início a tudo.

*Ryan Gattis é autor de Todos envolvidos, fundador da organização sem fins lucrativos 1888, que tem como objetivo a preservação, a divulgação e a promoção da herança cultural e da literatura na Califórnia, e integrante do coletivo de arte de rua UGLARworks.

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