Bastidores

O Dia em que Helen Macdonald Encontrou Christian Grey

21 / julho / 2016

Por Maria Carmelita Dias*

textocarmelita

Quis o destino, ou os deuses das coincidências, que eu tivesse que interromper a tradução de F de falcão para assumir um trabalho mais urgente. Adiante explico o porquê das coincidências. F de falcão, o belo livro da escritora e falcoeira britânica Helen Macdonald, trata da experiência da autora em como lidar com o luto pela súbita morte de seu pai.

A estratégia da autora, inusitada para a maior parte das pessoas, consiste em treinar uma ave de rapina, mais precisamente um açor, uma das aves mais indomesticáveis que existem. Ao longo do livro, Helen Macdonald, além de descrever seus sentimentos e sua relação com Mabel, o açor fêmea que treinava, mescla a própria história com passagens da vida do autor de uma de suas inspirações, o livro The Goshawk, o açor, do escritor inglês T. H. White. Apesar de não ser, no início, um genuíno falcoeiro, White se atreveu a treinar um açor como parte de sua tentativa de abandonar a escola onde tinha lecionado, de se afastar dos seres humanos, com quem não achava ter muita afinidade, e de colocar em prática preceitos de ensinamento diferentes daqueles com os quais fora educado e com os quais vinha trabalhando como professor. Mais que tudo, White queria ter a sensação de ser capaz de dominar um ser selvagem.

White, entre outras obras, escreveu uma saga fantástica, uma coleção de livros que relatavam a história do Rei Artur e do reino de Camelot: The Once and Future King, O único e eterno rei. O primeiro volume da coleção, The Sword in the Stone, A Espada na pedra, narra as aventuras do menino Wart, que mais tarde seria sagrado rei, e do seu encontro com o Mago Merlin. Esse volume teve os direitos comprados pelos estúdios de Walt Disney e se transformou no longa de animação que recebeu no Brasil o nome de A Espada Era a Lei. Quem não se lembra do fantástico duelo travado entre o Mago Merlin e a Madame Min, cujas armas eram as mágicas dos dois feiticeiros, transformando a si mesmos em animais que se enfrentavam?

untitledF de falcão é um livro igualmente mágico. Sua linguagem é poética, delicada, em contraponto ao tema tão intenso, que envolve luto, perda, morte, dominação, vida selvagem. Traduzir F de falcão foi entrar nesse universo de contrastes entre a intensidade do tema e a delicadeza da linguagem.

Pois bem, voltando ao início: no meio do trabalho, fui solicitada a participar da tradução de outro livro, cuja data de lançamento demandava urgência. Que livro era esse? Grey – Cinquenta tons de cinza pelos olhos de Christian, de E L James.

Assim, abandonei por uns tempos Helen Macdonald, Mabel e T. H. White, para me tornar, durante algumas semanas, mais uma submissa do Sr. Christian Grey.

À parte o fato de ambos os livros terem sido escritos por escritoras inglesas, não existem obras mais diferentes do que F de falcão e Grey. Porém, lá pelas tantas, eu me deparo com o seguinte trecho em Grey:

E me lembro de Grace, minha mãe, fazendo cafuné em mim enquanto eu lia trechos de O único e eterno rei em voz alta.

“Christian, isso foi ótimo. Estou impressionada, querido.”

Eu tinha sete anos e havia começado a falar havia pouco tempo.

 Ora essa, Christian Grey também leu T. H. White! Que estranha coincidência me faz retornar ao livro que eu deixara de lado temporariamente. Coincidência em vários sentidos. Nunca li as obras de T. H. White e tampouco as vi mencionadas nos livros que traduzi ou nos muitos que li. Então, descubro que o livro que Christian Grey lia em criança, quando começou a falar, era justamente… O único e eterno rei.

Traduzi pouco mais de um terço de Grey. Por que exatamente aquele trecho ficou a meu cargo? Por que White apareceu nos dois livros que eu estava traduzindo? (Afinal, como Helen Macdonald diz, White não era um escritor “da moda”.) E por que eu estava trabalhando exatamente com esses dois livros exatamente na mesma época? E, mais uma vez, constatei como o ofício da tradução me traz tantas surpresas, tantos conhecimentos e tanto prazer.

Grey 1

 

Algumas pessoas acham que traduzir é transpor mecanicamente algo escrito em um idioma para algo semelhante escrito em outro idioma. Para mim, traduzir é como montar as peças de um quebra-cabeça, em que todas as partes devem se encaixar à perfeição, embora aqui e ali seja necessário fazer uma adaptação e dar um empurrãozinho para preencher o espaço adequado.

Certas vezes, porém, uma peça parece se encaixar em outro tabuleiro, diferente daquele que estamos montando. Nessas ocasiões, o tradutor é premiado com uma surpresa, um fato novo que faz com que ele mergulhe ainda mais no texto a ser traduzido.

Na verdade, pensando bem, percebi que White e Grey tinham mais em comum do que seus sobrenomes descoloridos e o fato de uma estranha sincronicidade unir esses dois homens, um real e outro ficcional, pelo menos nos dois quebra-cabeças que eu estava montando. Ambos eram homens com mentes até certo ponto conturbadas, vidas sexuais fora dos padrões das respectivas épocas e infâncias marcadas pela violência. O comportamento adulto de ambos se caracterizou, em parte, pela vontade de dominar e controlar um outro ser: no caso de White, a dominação de uma ave de rapina selvagem e quase indomesticável; no caso de Grey, a dominação das mulheres com as quais se relacionava. Ainda mais engraçado é o fato de que a palavra “capuz” (que é colocado no falcão para impedir-lhe a visão e acalmá-lo) vem da palavra árabe burqa (que Grey impunha metaforicamente às mulheres com as quais se relacionava, além de vendar-lhes os olhos durante seus jogos sexuais). Os dois homens partilhavam até mesmo a mania de entupir seus dominados (ave e mulher) de comida.

No meio dessas surpresas, nos damos conta de como participamos dos eventos e fatos e vidas mencionados nos textos originais, como se eles realmente dependessem de nós de alguma maneira. De modo geral, o leitor se envolve em um texto, mergulha dentro dele, e se sente uma parte integrante dos acontecimentos. O tradutor vai além, mergulha em um nível ainda mais profundo. Ele atravessa o universo do texto, e passa para o outro lado, tornando aquele universo um pouco dele também. Ao traduzirmos, não podemos desprezar ou ignorar nenhuma informação presente, seja ela implícita ou explícita. Não existe a possibilidade de deixar um lugar vago, um espaço em branco no meio do tabuleiro. Se existe uma dúvida de como preencher aquele espaço, temos que agir como se fôssemos o autor e procurar desfazê-la de todas as maneiras possíveis, pois absolutamente todas as palavras, expressões e frases são consideradas e transpostas para o texto-meta, ainda que nem sempre estejam lá necessariamente em formato físico.

O que muitas pessoas não imaginam é que cada obra original necessita de uma boa dose de pesquisa durante a tradução. Às vezes, uma palavra, seja o nome de uma ave, de uma planta, de um instrumento, pode exigir um tempo considerável para chegar à escolha perfeita – ou quase. Já houve ocasiões em que passei uma tarde inteira só para ter certeza de que o nome de uma determinada planta era mesmo aquela.

No caso de F de falcão, por exemplo, entrei de cabeça no mundo dos falcoeiros – colecionei sites e glossários, me correspondi com um falcoeiro, aprendi a diferenciar todos os objetos necessários para a falcoaria, descobri diversas e diferentes aves de rapina da Europa, onde se passa a ação do livro, e do Brasil. Pedi ajuda a um amigo geólogo para poder entender geologicamente a cultura das paisagens de giz na Grã-Bretanha, presentes em parte do texto.

Amigos especialistas, aliás, são bastante requisitados pelos tradutores, seja no caso de armamentos (como em Homeland: como tudo começou, de A. Kaplan), de física (como em Minha breve história, de Stephen Hawking) ou de radiotransmissão (como em Toda luz que não podemos ver, de Anthony Doerr), por exemplo. Em Grey, havia pesquisas sobre contratos, brinquedos eróticos e partes de um helicóptero, entre outras. O tradutor tem que se certificar de que todas as informações constantes do texto original, sejam elas necessárias ou não para a ação principal da trama, também estejam presentes no texto traduzido.

Ainda assim, acho que o mais importante em uma tradução é entender a linguagem que permeia o livro a fim de transpô-la para o português. Já mencionei que F de falcão tem uma linguagem delicada – na verdade, bastante poética, em termos de vocabulário e imagens construídas. Grey, ao contrário, tem uma linguagem informal e cotidiana, com muitos diálogos e expressões populares. Já O regresso, de Michael Punke, por exemplo, que traduzi há algum tempo, e cuja ação se passa em regiões inóspitas do meio-oeste americano no século XIX, obviamente tem uma linguagem bem diferente daquela dos outros livros citados.

Em outras palavras, cada caso é um caso, cada livro é um livro, e todos fazem o tradutor conhecer mais, viver mais, participar mais. E todos transportam o tradutor para universos inusitados, cheios de surpresas.

*Maria Carmelita Dias decidiu ser tradutora na adolescência porque queria muito entender as letras dos Beatles. Formou-se em Tradução e Interpretação na PUC-Rio, onde lecionou e atuou como pesquisadora. Atualmente se dedica quase exclusivamente à tradução e já montou os quebra-cabeças de Cinquenta Tons de Liberdade, de E.L. James, e Estado de Graça, de Ann Patchett, entre outros.

Comentários

7 Respostas para “O Dia em que Helen Macdonald Encontrou Christian Grey

  1. Texto divino em todo o seu conteúdo. Perfeito em toda a sua extensão. Que prazer ler esse texto: um resumo dessa profissão tão pouco valorizada, mas tão necessária. Ler o texto dessa renomada Professora Tradutora é conhecer um pouco de tudo. Muito obrigada por compartilhar seu saber.

  2. Parabéns Carmelita! Excelente texto a respeito da complexa arte de traduzir.

  3. Muito interessante Carmelita, o valor de uma tradução. Também é uma arte. Parabéns.

  4. Que texto bom, Carmelita, não só pela descrição precisa dos desafios e prazeres da tradução, como pelo clima de suspense que você cria ao tecer os fios que aproximam White e Grey (sobrenomes descoloridos, grande sacada!). A qualidade da sua escrita vem confirmar a nossa convicção de que o tradutor precisa de fato dominar o seu instrumento de trabalho, que é a palavra.

  5. Parabéns tradutora Carmelita! Amo os livros e seu testemunho sobre o belo trabalho que realiza, me fez apreciar mais cada obra que tenho em mãos! Muito obrigada!

  6. Parabéns, Carmelita. Ao revelar os desafios do quebra-cabeça da tradução, mostra a arte da tradutora que é. Trata-se de uma arte que combina a competência como profissional de linguagem à competência como pesquisadora que não só busca a exatidão da linguagem, mas também segue pistas, como uma boa detetive. Seu texto nos desoerta o desejo de ler os livros citados!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *