Fernando Scheller

Águas escuras, mau presságio

28 / julho / 2016

Selma acordou no dia 4 de janeiro, o ano não começara. A casa cheirava a maresia e flores velhas, mas, sobretudo, a Otávio. O telefone não havia tocado durante as últimas setenta e duas horas. A secretária eletrônica não piscava, nenhuma condolência. Passara o tempo todo dormindo, uma pedra em que o mar batia gentil, como em uma baía. Sonhara com água, e sua mãe sempre dizia que ver água suja nos sonhos era mau presságio. Não, não estava completamente suja. Não fazia diferença, pois o que mais podia lhe acontecer? Ser atropelada por um ônibus? Aceitaria isso. Até lhe traria certa tranquilidade.

O sol entrava insistente pelas frestas da janela — quanta falta de educação! Tudo o que ela pensava era na lista de compras. Precisava comprar água sanitária, para apagar o odor de pus e de perfume Couros do ambiente — essa era uma tarefa imperativa. E tinta de cabelo — não conseguia se recordar da última vez que retocara as raízes. Tinha quarenta e sete anos. Andava parecendo muito mais.

Enterrara o filho no primeiro dia do ano, a poucos dias do vigésimo quarto aniversário dele. Na sala de parto, soube que o amaria mais que tudo, mas também previra, como bruxa, que ele seria uma maldição. Quando Selma tinha quinze anos, uma vidente lhe dissera que, sim, ela se casaria com Roberto, que ela amava tanto que doía. Apontando para a carta do tolo no tarô, a vidente prevenira ainda que haveria muito sofrimento em seu caminho. Ao ouvir que se casaria com Roberto, no entanto, sua atenção já se dispersara, não ouvia mais nada direito.

Não sabia se era coisa da sua imaginação, mas achava que a madame das cartas dissera algo sobre resolver acabar com o próprio sofrimento, e que isso seria uma decisão pessoal. Para cumprir esse objetivo nesse dia calorento, tinha dois caminhos: jogar-se debaixo de um ônibus às três da tarde, quando eles andam a toda velocidade na Nossa Senhora de Copacabana, ou encaixotar o passado e recomeçar. Só não sabia por onde recomeçar. O primeiro passo poderia ser comprando água sanitária e tinta para cabelo.

A vida sempre lhe apresentara escolhas impossíveis. Em dado momento, teve de escolher entre o marido e o filho. Escolheu o segundo, maior que a vida, esse objeto de adoração que trazia a maior das alegrias e uma dose de destruição. A última vez que se imaginou com netos ele deveria ter uns treze anos. Foi um pouco antes de Roberto sair de casa. Otávio era assim: único. Tinha de bastar. E Selma aceitara, entendera, acatara. Sempre teve a impressão de que poderia, de alguma forma, perdê-lo. Então decidira amá-lo.

Fora até o fim, muito além do que um dia supôs ser capaz de suportar. Aquele deus de tanta luz que afugentara o pai invejoso de seu brilho, aquele anjo que iluminava tudo parecia ter sido abatido por uma praga bíblica. Só ela, que tinha obrigação, e Inácio, tão puro que nem Otávio jamais ousara tocá-lo, puderam aguentar. Chagas pútridas cobriam seu corpo. O sol perdera o brilho. Transformara-se em um velho apagado, murcho, esquelético.

De repente, a ideia de abandonar tudo e acabar embaixo de um ônibus na Nossa Senhora de Copacabana voltou a parecer válida. Tomara banho, amarrara os cabelos malcuidados em um coque e os escondera sob um chapéu colorido. Usava um vestido do tipo envelope, estava esquálida de tão magra. Calçara sandálias de salto baixo, amarradas ao tornozelo. Antes de sair, pusera óculos escuros para esconder os olhos — não poderia encarar ninguém sem proteção. Pensou se Roberto a acharia bonita e, estranhamente, sentiu-se melhor.

Pela primeira vez em muito tempo, estava no comando do próprio destino. Contudo, perdera-se tanto em seus pensamentos que já eram quatro e meia. Jogar-se debaixo de um ônibus no horário de pico seria uma extrema falta de consciência social. Uma riquinha da Zona Sul atrapalhando a vida dos trabalhadores. Acabou decidindo-se mesmo pela água sanitária e pela tinta de cabelo. Enfrentou o calor e a fila do supermercado. Sentiu as pessoas na rua esbarrarem nela. As marcas da sacola plástica em suas mãos. Sim, vivia.

Ao retornar, encheu os baldes d’água, precisava eliminar o cheiro do filho de casa, esterilizar. Podia lidar com os pertences, com os trabalhos manuais da infância, com as roupas, mas não com essa mistura de odores que ficara para trás, de bebê, de excitação, de perfume, de euforia, de doença.

Quando terminar, abrirá uma garrafa de vinho e tomará uma taça, talvez duas. E então pensará no próximo passo. Por enquanto, basta-lhe esfregar as paredes com fúria.

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