Fernando Scheller

Quando acontece com você

2 / junho / 2016

Está chuvoso, mas ela usa óculos escuros. Sente-se reconfortada pelo fato de que, nessas ruas do centro, uma mulher tentando esconder os olhos em dia sem sol está longe de ser a coisa mais estranha que alguém poderia ver.

É preciso tomar uma decisão. Veio até aqui, mas agora se vê cercada de dúvidas. Sair ou não do carro, andar rápido ou devagar até a porta da delegacia? Dois filhos, duas casas, sendo uma de campo, e muitas mentiras. Decidiram que o divórcio era a melhor solução. Triste, mas uma decisão madura.

Ele já saíra de casa e há dois meses se instalara em um hotel. Era um homem bem-sucedido, não especialmente bonito, porém persuasivo o suficiente para fazer jovenzinhas de vinte anos rirem-se todas. Era um dom, o da conquista, o do papo mole. Sempre tinha exercitado essa capacidade por aí. Fazia tempo ela havia parado de se importar com isso.

Pelo espelho do carro, olha e vê que uma fração da mancha roxa ao redor de seu olho está visível. Pensa em escondê-la de alguma forma. Seria mais uma a entrar na longa fila de mulheres que, ao longo de gerações, caem da escada ou sofrem um acidente na cozinha? Sempre fora distraída, nunca soubera aonde queria ir. Era até capaz de acreditar nessa justificativa.

O marido — quase ex-marido — era menos importante do que ele próprio pensava, mas conhecido o bastante para que o caso saísse nos jornais. Viu-se zelando pelos filhos e por um segundo sentiu pena do homem com quem convivera por onze anos. Considerando a pouco animadora média, era um bom homem, talvez não merecesse cair só por um deslize.

Então o sentimento de humilhação, que ela jamais poderia explicar em palavras, tomou conta de seu corpo e ela tremeu. De raiva, de medo, de impotência, de não saber o que fazer. Era preciso tomar uma decisão: correr em direção à delegacia ou correr para casa. Seria mais prático resolver tudo por meio de advogados e, como gente civilizada, exigir mais dinheiro na separação.

Reconstituiu o que aconteceu. Recordou a mão pesada, com cheiro de uísque, pousando em seu rosto. Esmiuçou todos os detalhes. Não foi uma bofetada, pois a mão dele estava semicerrada. Para prestar depoimento, é necessário ater-se aos fatos. Decidiu, naquele momento, que era importante não chorar. Isso, sim, ela poderia fazer sozinha, tarde da noite, trancada no quarto.

Colocou, calma e decidida, os óculos escuros no painel do carro. Lembrou-se até de apertar o botão para acionar o alarme. Não correria nem tentaria disfarçar o hematoma no rosto. Pelo contrário: para certificar-se de que todos veriam a marca, amarrou os cabelos em um coque. Decidiu contar os passos até a porta da delegacia para não caminhar rápido demais. Seriam cento e oitenta bem compassados, para marcar os segundos.

Era fim de tarde e havia um número considerável de pedestres passando naquela calçada. À medida que avançava, tentava não se concentrar nos olhares. Sentia o rosto latejar com a brisa fria. Decidiu que aceitaria se alguém olhasse para ela e visse vergonha ou desonra. Pois sabia que era dele, e não sua, a desgraça que carregava.

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