Clarice Freire

Álbuns antigos, a mala do tempo e uma escadaria

1 / junho / 2016

Coluna Clarice

Estava, por esses dias, olhando fotos antigas. Sempre desejei uma máquina do tempo para reviver alguns momentos do passado ou visitar outros que nunca vivi. Dar uma volta pelo Recife Antigo com Clarice Lispector, tomar um café com John Lennon, rodar pelas ruas ouvindo Jesus falar.

Infelizmente, o mais próximo que consegui chegar de tal desejo foi vendo álbuns antigos. Ah, que costume bonito que perdemos: revelar fotos, montar álbuns, escrever legendas à mão! Ao menos meus pais tinham esse costume. Li, inclusive, vários detalhes sórdidos e estranhamente proféticos sobre meu presente recém-nascido com dicas sobre o futuro.

Não que isso me encha de real admiração. Toda mãe é profeta, adivinha, cigana e fada. Elas falam e acontece.

Passando as páginas dos álbuns, uma foto me chama especialmente a atenção. Olhando assim não teria nada demais. Nela, uma-minha-mãe-mais-jovem-que-eu estava sentada em uma escadaria antiga, com ar colonial.

“Que escadaria bonita”, penso.

Uma lembrança vem visitar meus pensamentos naquele exato instante. Eu e mais dois amigos andando pelas ladeiras de Ouro Preto, a cidade mágica de Minhas Gerais. Eu estava participando do Fórum das Letras, evento literário local. Aquelas ladeiras nos levam a infinitos lugares históricos, significativos, e uma ruazinha bastante discreta estava no meio delas, apenas uma viela, nada demais, como as coisas que costumam me chamar a atenção.

“Que escadaria bonita”, pensei.

Obviamente estávamos cansados (eu mais do que todos, pois não tenho o melhor preparo físico), e nessas horas caminhamos focados; ficar parando não faz parte da dinâmica. Mas ali estava aquela escadaria enorme, antiga, cercada por duas paredes com ar medieval. Me lembrou a Itálica. Então eu chamo o amigo: “Ei, Pedro, peraí.”

Lá vem Pedro Gabriel, aquele que também se chama Antônio. O coitado volta seus passos já conquistados à minha frente.

“Pedro, tira uma foto minha sentada aqui?”
“Aí? Tá bom. Vai lá. Quer que apareça a escada toda?”
“Sim! Pega a escada.”

Sento, tiramos a foto, eu saio satisfeita.

Volto para a foto da minha mãe e procuro a minha para comparar. Não seria possível. Os degraus, a janela ao fundo, a parede com a mesma linha cortando-a ao meio. Era a mesma escadaria, com detalhes transformados pelo tempo, assim como as modelos sentadas em seus degraus. Mas era uma viela tão insignificante… Tanto eu quanto a minha mãe só fomos uma vez a Ouro Preto, uma cidade com tantos lugares para fotografar… Aquele lugar encantado tem beleza a cada ladrilho. E lá estão as fotos, nós duas quase com a mesma idade e sentadas do mesmo jeito. Fizemos os cálculos: entre a minha foto e a dela são mais de 30 anos.

Que mistério é a vida! Sempre fui fascinada pelas estrelas e pela imensidão do universo, das galáxias desconhecidas, do incompreensível que nos rodeia. Neste exato momento, estamos flutuando no espaço e sendo sugados por uma força gravitacional que nos puxa irresistivelmente para o centro ardente em chamas do nosso planeta — imenso para mim, insignificante para o infinito universal. Que desproporção! Sou insignificante e tenho tamanho significado em microespaços por onde respiro e respirei.

Quantos mistérios existem entre o céu e a Terra? Shakespeare se perguntava há tantos anos e nunca se respondeu. Somos dois. Mas eles — os mistérios — também são infinitos. Que fazer?

O que é o tempo?
“Tudo passa com o tempo”, aprendi.

Hoje me pergunto se tudo passa ou se algumas singelezas não ficam dentro de uma mala temporal, feita de baladas invisíveis emitidas por sinos ao longo dos séculos, por exemplo. Dentro dela deve haver de tudo: uns passos dados, uns caminhos traçados, uma memória que nunca foi minha, mas estava, quem sabe, circulando pelo meu sangue? O tempo depositou lembranças em meus glóbulos vermelhos, ou quem sabe na retina. Porque meus olhos amaram os mesmos degraus que a minha mãe 30 anos antes de mim, a mesma sina.

E meu desejo foi repetir, neles, o mesmo gesto. Vai entender. Foi instinto? O que sinto? Falo o verdadeiro ou minto?

Será que o tempo passou ali e guardou nas paredes segundos, minutos, décadas, miragens? E eu apenas, inocente, os peguei para mim

em mais uma das minhas passagens.

Álbuns antigos congelam o tempo. Fotografias eternizam olhares e lugares. Ventos e ares. Palmas e palmares. O que sonhas e o que, por ventura ou aventura, sonhares.

Repeti os passos da minha mãe sem um motivo.
Ele é mistério. Para vivê-lo,
é só estar vivo.

Agradeço ao enigma que é a vida.

“Decifra-me ou te devoro”, ameaça a esfinge. Devora coisa nenhuma. O tempo é mais poderoso que você, querida. Ele se deixa decifrar, se quiser.

Ele e suas artimanhas soltas (ou presas?)
pelo ar.
O delicioso de vi-ver é abrir as retinas para,
diaria-mente,
desvendar.

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Comentários

2 Respostas para “Álbuns antigos, a mala do tempo e uma escadaria

  1. Como sempre nos presenteando com suas perolas literarias,nos fazendo viajarmos no tempo e no espaço,em frente CLARICE.

  2. Lindo depoimento de um passado, que trouxe a tona emoções felizes. Parabéns pelo relato e pela ideia.Vou atrás da estátua de um leão zinco na praia de Santos.Obrigada.

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