Bastidores

A liberdade de comer sem sofrer

9 / maio / 2016

Com tantas informações e regras, comer simplesmente virou um inferno, com tudo controlado e altamente racionalizado. Mas onde foi parar a alegria de comer? A felicidade em compartilhar uma refeição com quem amamos? Neste texto, nossa editora assistente Luana Freitas conta como Cozinhar, de Michael Pollan, a libertou desse emaranhado sufocante.

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(fonte)

Lá fui eu para uma consulta com uma nutricionista. A terceira de toda a minha vida. Em mais uma das incontáveis tentativas de ser saudável e, sim, de emagrecer… horrores. Eu fiquei ali, respondendo às perguntas de sempre, ouvindo as recomendações que conhecia de cor.

As únicas novidades para aquela consulta eram as taxas alteradíssimas do exame de sangue e a raiva. Sim, raiva, muita raiva. Eu me culpava por ter me permitido engordar aqueles dezoito quilos (a meta da vez), pois não havia desculpa. Já li por conta própria e revisei vários livros de reeducação alimentar, dieta, nutrição e doenças ligadas à alimentação, já trabalhei em diversos livros de receitas saudáveis. Sabia claramente o que deveria fazer e cortar e quais eram as consequências dos meus maus hábitos. Então por que a frustação, a culpa, a sensação de impotência?

Por mais curioso que possa parecer, eu, que trabalho há tanto tempo com livros, não precisei encontrar a dieta, a clínica ou o médico certo para eliminar todos esses sentimentos ruins. Precisei apenas encontrar o livro certo. Na verdade, o escritor. Foi apenas por trabalho que descobri o Cozinhar, do jornalista Michael Pollan. Ainda bem, pois teoricamente eu poderia ter sido levada ao grande erro de achar que o livro tratava apenas sobre o ato de cozinhar e jamais abri-lo (nunca tive muita paciência para cozinhar, esperar os três minutos do macarrão instantâneo já me irritava profundamente).

cozinhar211x319Sendo obrigada a ler o livro, descobri o que me faltava: encantamento, diversão e, por que não, sedução. Pois é simplesmente impossível não se deixar levar pela empolgação de Pollan pela cozinha. As descrições dele para os métodos de preparo dos pratos que aparecem no livro são uma forma requintada de tortura. Quando a obra virou série da Netflix, a cena mais aguardada de todos os tempos foi a do preparo do bendito porco inteiro assado lentamente. Também fiquei ansiosa para ver uma personagem fazer um cozido. Sim, um cozido. A coisa mais simples de se fazer. Mas esse é o poder de Pollan: ao realçar toda a beleza e poesia do ato de cozinhar, de preparar a própria comida, ele nos leva a abrir nossos olhos para o que esteve sempre ali, para toda a gama de sabores e texturas da comida de verdade.

O ponto-chave para minha mudança foi adotar a estratégia do autor: em vez de pensar no negativo, investir numa agenda positiva, empolgante e social. Na sua prosa simples, direta e bem humorada, Pollan nos mostra aos poucos como o ato da alimentação envolve todos a nossa volta, interfere radicalmente na forma como nos relacionamos com os outros e conosco. Instigada pelo livro, encontrei conforto nas receitas da minha mãe: doce de abóbora e de laranja-da-terra, bertalha na sopa, vaca atolada, empadão de frango, batata-doce cozida. Passei a cozinhar mais, a conversar com meu marido sobre receitas que poderíamos experimentar. Também descobrimos vários alimentos. Na série, há várias cenas de Pollan na cozinha ou no quintal de casa, preparando pão, cerveja, cozido e um churrasco, o que representa bem a minha fantástica descoberta de que é bem mais legal fazer as refeições em família, todo mundo em casa, cozinhando e conversando.

A grande jogada está na tomada de consciência gerada pelo livro, a revelação de tudo de que abrimos mão quando delegamos a corporações o preparo do que consumimos. Ao permitirmos que grande parte da nossa alimentação seja baseada em produtos industrializados, nós entramos no modo comida pela comida, nós deixamos de reservar um tempo para nós mesmos e para compartilharmos momentos com nossos familiares, amigos e até com os produtores locais.

Depois que passei a lutar para ter mais comida de verdade no meu prato, muita gente veio me falar de restrição, sofrimento por não poder comer certas coisas. O engraçado é que para mim esse mergulho nos livros e no pensamento de Pollan significou liberdade, me trouxe uma calma inigualável. Não preciso mais contar calorias, decifrar informações de tabelas nutricionais ou classificar os alimentos em grupos como proteínas e carboidratos. Cozinhar abriu a minha mente para simplesmente comer e fazer desse ato algo magnífico.

Minha relação com a comida melhora conforme compreendo o meu papel na cadeia de produção de alimentos, a forma como a indústria alimentícia me vê, a maneira como a refeição impacta a minha relação com quem divide a mesa comigo e como a alimentação tem um poder agregador subestimado. Quando substituí as dietas pelo mantra “comer comida de verdade”, tudo se encaixou e fluiu naturalmente. Não há mais sofrimento, frustração ou culpa, e as relações melhoraram, já que tudo melhora quando a gente cuida do que come.

Para mim é complexo escrever sobre a importância de Pollan, pois os livros dele, sobretudo o Cozinhar, não são sobre emagrecer, comer melhor ou a indústria alimentícia em si. São mais sobre o nosso lugar no mundo, sobre que posição assumimos nele e o que queremos para nós mesmos. Em última instância, é um pedido para darmos uma parada na agitação da vida cotidiana e refletirmos sobre quem de fato somos; um pedido para que olhemos para o passado e tomemos consciência de como estamos permitindo que nossos laços se enfraqueçam, que nosso corpo seja destruído, que viremos apenas consumidores passivos, sem consciência nem voz. Mas, acima de tudo, os livros e a série de Pollan são a celebração do que nos diferencia dos animais, o que nos torna únicos: a criatividade e a curiosidade que nos movem a criar e transformar com o que encontramos na natureza. Não à toa, meu capítulo favorito do livro e da série é o do Ar. Você já parou para pensar quão belo e louco é conseguir criar um pão a partir de farinha, água e fermento?

>> Confira a entrevista com  Michael Pollan sobre Cozinhar
>> Leia um trecho do livro Cozinhar

 

Luana Freitas é editora assistente de ficção e não ficção estrangeiras, além de viciada em programas de culinária e ótima com receitas doces.

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