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Leia um trecho de Eu sou o Peregrino

29 / abril / 2016

Com anos de experiência no mundo da espionagem, no qual se tornou um dos agentes mais proeminentes em uma organização responsável por punir agentes que cometem crimes, Peregrino decide se aposentar. Em seu tempo livre, ele decide escrever sobre a arte da investigação forense e, com o nome de um policial já falecido, publica um dos maiores sucessos da literatura criminal. No entanto, uma série de crimes incomuns tira o agente da aposentadoria e o coloca de encontro a um criminoso internacional com planos de destruição em massa.

Romance de estreia do renomado roteirista britânico Terry Hayes, Eu sou o Peregrino é uma narrativa ágil, com ritmo alucinante, cujos personagens são construídos de forma primorosa em toda sua complexidade psicológica. Leia um trecho abaixo:

 

CAPÍTULO UM

Há lugares dos quais me lembrarei a vida inteira — a Praça Vermelha com o vento quente sibilando, o quarto de minha mãe no lado errado da 8 Mile Road, os jardins intermináveis de um elegante lar adotivo, um homem esperando para me matar em um conjunto de ruínas conhecido como o Teatro da Morte.

Porém, nada está mais profundamente gravado em minha memória do que um prédio sem elevador em Nova York — cortinas puídas, móveis baratos, uma mesa repleta de cristal e outras drogas recreativas. Junto à cama há uma bolsa, uma calcinha preta fio dental e um par de sapatos Jimmy Choo com saltos de quinze centímetros. Assim como sua dona, esses objetos não pertencem àquele lugar. Ela está nua no banheiro — com a garganta cortada, flutuando de bruços em uma banheira cheia de ácido sulfúrico, princípio ativo de um desentupidor líquido disponível em qualquer supermercado.

Há dezenas de garrafas vazias do produto — da marca Drain Bomb — espalhadas pelo chão. Sem ser percebido, começo a analisá-las. Todas ainda estão com as etiquetas de preço e vejo que, a fim de evitar suspeitas, quem a matou comprou o produto em vinte lojas diferentes. Eu sempre disse que é difícil não admirar um bom planejamento.

O local está um caos, o barulho é ensurdecedor — rádios da polícia aos berros, assistentes de legista implorando por reforços, uma mulher hispânica chorando. Mesmo que a vítima não conheça ninguém no mundo, parece que sempre há alguém aos prantos em uma cena como essa.

A jovem encontrada no banheiro está irreconhecível — os três dias que passou em meio ao ácido destruíram todos os seus traços. Esse era o plano, creio eu. Quem a matou também forçou suas mãos para baixo usando listas telefônicas. O líquido dissolveu não apenas as impressões digitais como também seus metacarpos.

A menos que os peritos do Departamento de Polícia de Nova York tenham a sorte de conseguir uma identificação utilizando a arcada dentária, vão ter muito trabalho para nomear esta vítima.

Em lugares assim, onde se tem a impressão de que a maldade ainda está entranhada nas paredes, sua mente pode vagar para territórios estranhos. A ideia de uma jovem sem rosto me fez pensar em uma antiga música de John Lennon e Paul McCartney — sobre Eleanor Rigby, uma mulher que usava um rosto que guardava em um jarro junto à porta. Em minha mente, começo a chamar a vítima de Eleanor. Os peritos da cena do crime ainda têm trabalho a fazer, mas ninguém ali duvidava de que Eleanor havia sido morta durante o sexo: o colchão metade fora do estrado, os lençóis emaranhados, um jato marrom de sangue em decomposição na mesa de cabeceira. Os mais mórbidos acham que ele cortou a garganta da vítima enquanto a penetrava. O pior é que podem estar certos. Seja lá como ela tenha morrido, aqueles que procuram o lado bom das coisas, pequenas misericórdias, podem encontrar algo positivo nisso: ela não deve ter percebido o que estava acontecendo, não até o último momento, pelo menos.

O cristal — metanfetamina — se encarregaria disso. Quando chega ao cérebro, faz com que você fique com tanto tesão, tão eufórico, que qualquer capacidade de pressentir algo ruim se torna impossível. Sob seu efeito, o único pensamento coerente que a maioria das pessoas consegue ter é encontrar um parceiro para trepar até desmaiar.

Ao lado dos dois papelotes vazios de metanfetamina há o que parece ser um daqueles frascos minúsculos de xampu, típicos de banheiros de hotel. Sem rótulo, contém um líquido claro — GHB, deduzo. A substância tem feito sucesso nos cantos obscuros da internet: em grandes doses, está substituindo o Rohypnol como a droga da vez para um “boa noite, Cinderela”. A maioria das boates está cheia dessa droga: os viciados a tomam em pequenas doses para cortar o efeito do cristal e a paranoia. Mas o GHB também tem seus próprios efeitos colaterais: perda de inibições e uma experiência sexual mais intensa. Nas ruas, um de seus apelidos é Trepada Fácil. Sem os sapatos e a minúscula saia preta, Eleanor deve ter parecido os fogos de artifício no Quatro de Julho.

Enquanto passo pela aglomeração de pessoas — um desconhecido para todas elas, um estranho com um casaco caro pendurado no ombro e um monte de orgias movidas a drogas no passado —, paro diante da cama. Abstraio o barulho e a vejo em minha mente, nua, cavalgando como uma vaqueira. Tem vinte e poucos anos, um belo corpo, e eu a imagino completamente envolvida naquilo — o coquetel de drogas precipitando um orgasmo arrasador, sua temperatura corporal subindo graças à metanfetamina, seus seios intumescidos balançando, o coração e o fôlego disparados pela paixão e pelas substâncias químicas, a respiração ofegante, a língua molhada com um movimento próprio, ansiando pela boca mais abaixo. Hoje em dia, sexo definitivamente não é para maricas.

Letreiros de néon de uma fileira de bares na rua teriam iluminado os reflexos alourados de seu corte de cabelo da moda, fios que brilhavam como o mostrador de um relógio de mergulho Panerai. Sim, o cabelo é tingido, mas é uma boa falsificação. Conheço essa mulher. Todos conhecemos — o tipo, pelo menos. Você a encontra na enorme nova loja da Prada em Milão, na fila do lado de fora das boates do SoHo, bebericando café com leite nas cafeterias famosas da avenue Montaigne; mulheres jovens que acham que a People é uma revista de notícias e que um ideograma japonês às costas é sinal de rebeldia.

Imagino a mão do assassino em seu peito, tocando o piercing de seu mamilo. O sujeito o toma entre os dedos e o puxa, trazendo-a mais para perto. Ela grita, excitada — tudo está hipersensível agora, especialmente os mamilos. Mas ela não se importa: se alguém quer jogar duro, isso apenas significa que deve gostar dela de verdade. Empoleirada em cima dele, a cabeceira da cama batendo com força contra a parede, ela estaria olhando para a porta da frente — certamente trancada e com a corrente. Naquele bairro, é o mínimo que você deve fazer.

Um diagrama na porta exibe uma rota de fuga — ela está em um hotel, mas qualquer semelhança com o Ritz-Carlton praticamente termina aí. O lugar se chama Eastside Inn, lar de itinerantes, mochileiros, gente desequilibrada e qualquer pessoa com vinte dólares para passar a noite. Fique o tempo que quiser — um dia, um mês, o resto da vida. Tudo que você precisa é de dois documentos que comprovem sua identidade, um deles com foto.

O hóspede do Quarto 89 estava ali havia algum tempo. Um pacote de seis cervejas repousa sobre uma cômoda junto a quatro garrafas meio vazias de destilados e algumas caixas de cereal matinal. Há um aparelho de som e alguns CDs em uma mesa de cabeceira, e eu os verifico. Ele tinha bom gosto musical, ao menos merece esse crédito. O armário, no entanto, está vazio. Parece que levou apenas as suas roupas, enquanto deixava o cadáver derretendo no banheiro. No fundo do armário há uma pilha de lixo: jornais descartados, uma lata vazia de inseticida, um calendário de parede manchado de café. Eu o pego, e cada folha exibe uma foto em preto e branco de uma antiga ruína: o Coliseu, um templo grego, a Biblioteca de Celso à noite. Muito artístico. Mas as páginas estão em branco, nenhum compromisso marcado. Parece que nunca foi usado para outra coisa além de suporte de xícaras de café, então eu o devolvo ao lugar onde estava.

Eu me afasto e, sem pensar, por pura força do hábito, passo a mão pela mesa de cabeceira. Estranho: nenhuma poeira. Faço o mesmo com a cômoda, a cabeceira e o aparelho de som e obtenho o mesmo resultado: o assassino limpou tudo para eliminar suas digitais. Isso não vai livrar a cara dele, mas quando sinto um odor característico e levo os dedos ao nariz, tudo muda. O cheiro do resíduo é de um spray antisséptico usado em UTIs para combater infecções. Mata as bactérias, mas, como efeito colateral, destrói material de DNA: suor, pele, cabelo. Ao pulverizar tudo no quarto e, em seguida, encharcar o tapete e as paredes, o assassino se certificou de que o Departamento de Polícia de Nova York não precisaria usar seus aspiradores de perícia criminal.

Com clareza súbita, percebo que aquilo é tudo, menos um clássico assassinato por dinheiro, drogas ou satisfação sexual. Como homicídio, é um feito notável.”

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