Leticia Wierzchowski

Das brancas madrugadas

1 / abril / 2016

a-baricco

Dia destes fui buscar, numa pequena cidade do interior, uma amiga que chegava num ônibus ao alvorecer. Saí da cama às cinco da manhã, mergulhando naquele mundo mágico das coisas desacordadas — um mundo silencioso, estático e gelatinoso, como que preso num feitiço, tal qual o reino onde a princesa, vítima de uma malévola bruxaria que uma feiticeira lhe lançou ainda no nascimento, é posta a dormir depois de tocar com o dedo uma roca proibida. A essa hora da madrugada as casas cerradas guardam o sono dos seus donos; o tempo anda de chinelas e pisa leve, na ponta dos pés, como uma daquelas tias velhas dos poemas de Mario Quintana.

Acordar no meio da noite — para mim, que sempre desperto com o sol alto — não para sossegar o filho preso num sonho ruim, amamentar o bebê no berço ou trocar sua fralda e sentir a delícia do seu corpinho cálido, mas para sair à rua, é uma experiência estranha. A rua não é a mesma durante a noite. A cidade não é a mesma nem ampara nas suas calçadas os mesmos habitantes diurnos. Tudo é da lua e das estrelas. Até o mar é outro à noite. Misterioso e amarelado, é uma colcha espessa que geme como um grande animal que subitamente perde o sono.

Assim me fui, naquela madrugada, dirigindo o carro pelas ruas desertas. O trajeto foi feito em cinco minutos — no meio da noite, a cidade entrega-se sem receios. Na rodoviária, os únicos laivos da vida: as caras insones dos dois guardas; o rosto triste, acabrunhado, da moça no balcão da companhia me dizendo que o ônibus chegaria em dez minutos; e uns poucos e ruidosos adolescentes desfeitos de alguma festa que passavam pela calçada cantando alto por poucos instantes — logo suas vozes morreram, apagaram-se como uma fogueira na qual se joga um balde de água. Até para eles o silêncio imponderável da cidade adormecida causou estranheza. O grupo seguiu outra vez quieto pela rua deserta, enquanto eu buscava um banco onde me acomodar.

Os dez minutos transformaram-se em quarenta, uma eternidade de silêncios e bruma. A madrugada arrastou-se preguiçosamente na sua esteira de segredos. De repente, como um aviso ou uma mágica, uma criança chorou no prédio em frente, e o choro, agudo e sincrônico, abriu caminho para a vida: lá para os lados do horizonte, uma nesga de vermelho se incendiou, trazendo consigo a primeira luz da manhã, e numa esquina dobrou o ônibus que eu esperava. Enfim, o dia finalmente começou. Em seu quarto na rua em frente, a criança parou misteriosamente de chorar.

 

Na legenda — falando em madrugadas e seus mistérios: Alessandro Baricco, autor de Três vezes ao amanhecer, livro delicado e inesquecível que passeia pela bruma dos amanheceres. Emocionante.

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