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Todos envolvidos

3 / março / 2016

Em abril de 1992, um júri absolveu três policiais brancos do Departamento de Polícia de Los Angeles acusados de usarem força excessiva para controlar um taxista negro chamado Rodney King. Havia provas irrefutáveis de que Rodney tinha sido severamente espancado. Poucas horas depois do julgamento, a cidade ardeu em chamas. A população se revoltou com um sistema que mais uma vez se mostrara injusto. O caos durou seis dias, e protestos, saques e assassinatos tomaram conta da cidade.

O episódio serviu de inspiração para Todos envolvidos, romance de Ryan Gattis que narra como gangues latinas se aproveitaram da situação para acertarem as contas com seus rivais. Uma narrativa verossímil e eletrizante com o ponto de vista de 17 personagens que direta ou indiretamente estão envolvidos com o mundo das gangues.

O livro chega às livrarias a partir de 15 de março.

Leia um trecho:

Ernesto Vera

29 de abril de 1992

20h14

CAPA_TodosEnvolvidos_300dpiEstou em Lynwood, South Central, perto do cruzamento da Atlantic com a Olanda, em uma festinha de aniversário de criança, embrulhando em papel-alumínio as bandejas com os feijões que ninguém comeu, então me dizem para ir para casa mais cedo e que talvez eu nem precise trabalhar amanhã. Talvez nem por uma semana. Meu chefe está preocupado que o que está acontecendo na 110 Street chegue aqui. Ele não fala de confusão nem revolta nem nada. Apenas fala “essa coisa mais ao norte”, mas está se referindo ao lugar onde as pessoas estão queimando coisas, quebrando vitrines e levando porrada. Penso em discutir com ele, porque preciso do dinheiro, mas isso não ia dar em nada, daí nem gasto minha saliva. Guardo os feijões na geladeira da van, pego meu casaco e vou embora.

Quando chegamos lá, no começo da tarde, eu e o Termite — um cara que trabalha comigo —vimos fumaça, quatro colunas pretas se erguendo igual às torres de petróleo pegando fogo no Kuwait. Talvez não tão grandes, mas grandes. O pai do aniversariante, já meio bêbado, viu que tínhamos reparado na fumaça enquanto arrumávamos as mesas, e disse que era porque os policiais que espancaram o Rodney King não iam ser presos, e o que é que nós achávamos disso? Cara, você sabe que a gente não achou legal, mas não vamos dizer isso para o cliente do nosso chefe! Além do mais, foi uma grande injustiça e tal, mas o que a gente tem a ver com isso? Estava estourando em outro lugar. Aqui, a gente só precisa calar a boca e fazer o serviço.

Estou trabalhando na van dos Tacos El Unico faz quase três anos. É só falar que eu faço. Al pastor. Asada. Tranquilo. Também rola um ótimo cabeza, se bater a vontade. Senão tem lengua, pollo, é você que manda. Tem para todo mundo, sabe como é. Geralmente estacionamos do lado do nosso quiosque na Atlantic com a Rosecrans, mas às vezes fazemos festas de aniversário, bodas, qualquer coisa, na verdade. Não recebemos por hora nesses eventos, por isso fico feliz quando acabam mais cedo. Dou tchau para o Termite, digo que da próxima vez é melhor ele lavar bem as mãos antes de aparecer e caio fora.

Andando depressa, são vinte minutos a pé para casa, quinze se eu pegar a Boardwalk, a rua de pedestres entre as casas. Não é um calçadão como em Atlantic City nem nada. É só uma viela estreita de concreto no meio das casas, que serve como ligação entre a avenida principal e o bairro. É o nosso atalho. Como diria minha irmã: “Desde sempre é o lugar onde os malucos correm da polícia.” Descendo, ela leva você direto para a Atlantic. Subindo, leva para as casas, rua após rua. É essa direção que eu pego. Subindo.

A maioria das varandas está com a luz apagada. Os quintais também. Ninguém do lado de fora. Nenhum dos ruídos de sempre. Nenhum rádio tocando velhos hits do Art Laboe. Ninguém consertando carros. Passando pelas casas, ouço apenas TVs ligadas, os âncoras falando de saques e incêndios e Rodney King e negros e revolta e eu acho tranquilo, tanto faz, porque estou concentrado em outra coisa.

Não me entenda mal. Não é que eu esteja sendo frio, estou apenas resolvendo o que precisa ser resolvido. Cresça no mesmo bairro que eu, com uma loja de armas que vende balas avulsas por vinte e cinco centavos para qualquer um que tiver uma ideia ruim na cabeça e uma moeda no bolso, e talvez você acabe como eu. Não abatido, nem irado nem nada, apenas concentrado. E nesse momento, estou contando os meses até conseguir cair fora.

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