Fernando Scheller

Pai real, pai imaginário

24 / março / 2016

Aos oito anos, o menino andava quase trinta minutos para chegar ao colégio. Eram os anos 1980 — outros tempos. Os pais se preocupavam menos; tinham filhos demais para tratar cada um como se fosse uma peça de porcelana ou preservá-los como o ser humano que viria a salvar o mundo de uma epidemia rara. Então, na segunda série, andava doze quarteirões até a escola. Passinhos pequenos, um diante do outro.

Se quisesse chegar à uma, precisava sair ao meio-dia e meia. Mochila jeans nas costas, cheia de cartilhas e cadernos recheados de parabéns e notas dez, e uma lancheira do papa-léguas. Destacava-se tanto nas aulas que, à noite, ao contrário de todas as crianças do mundo, rezava para tirar 82 na prova, em vez de 99. Às vezes encontrava uns amigos no meio do caminho; às vezes o primo de segundo grau, alcoólatra, se oferecia para levá-lo de carro. Ele, claro, aceitava.

Em regra, o garoto fazia o trajeto a pé, sozinho. A caminhada diária, no entanto, jamais era em vão. Todos os dias, naqueles idos de 1985, tinha uma missão: encontrar seu pai verdadeiro. Decidira, em silêncio, que havia algo de errado com a história que lhe contaram. Era impossível ter um pai de 57 anos. Fizera e refizera as contas: era quase o dobro da idade da maioria dos outros pais. Além do mais, não se achava parecido com ele. Talvez fossem apenas semelhantes o suficiente para que ninguém pudesse desvendar a trama.

Desenvolveu algumas teorias. Na primeira delas ele era fruto de uma relação ilícita de um dos tios, o irmão mais novo de sua mãe. A família, naquela cidade pequena, não queria saber de escândalo e resolveu acobertar a história, oferecendo um novo filho para seus pais. Depois de pensar um pouco no assunto — na verdade, após dedicar-se bastante ao tema —, essa hipótese passou a não lhe agradar tanto.

A família quase inteira morava no mesmo quintal, e um segredo cabeludo não seria guardado por muito tempo. Na primeira discussão, alguém ia dar com a língua nos dentes. E as brigas eram constantes. Sem falar nada a ninguém, descartou a própria teoria. Mas não desistira de encontrar seu pai verdadeiro, e usava o caminho até a escola para desvendar o mistério.

Era um jogo de adivinhação diário. Seria o homem que, com a caminhonete estacionada, fazia a barba dentro do carro, usando um barbeador elétrico? Seria o dono da loja de materiais de construção? Será que, com o dinheiro que todas aquelas pessoas compravam sacos de cimento, ele ajudava a pagar a mensalidade da escola? Podia ser ainda o Amintas, da mercearia, que lhe dera uma paçoca de graça outro dia.

De uma coisa tinha certeza: era nessas caminhadas que seu pai verdadeiro o acompanhava, só para certificar-se de que ele estava bem. Um dia, no momento correto, contaria toda a verdade. O tempo passou e, no entanto, o pai — fosse quem fosse — parecia não ter reunido as forças para se aproximar. Aos poucos, a ideia da busca acabou se dissipando na cabeça do garoto. Até que abandonou o assunto, sem se dar conta.

O menino cresceu e, embora tenha se esquecido da procura pelo pai imaginário, nunca chegou a ser realmente próximo do pai  real. Não havia brigas, mas os dois pareciam ser diferentes em tudo. Eram opostos. Um gostava de fazenda; o outro, de cidade. Um era caladão, o outro falava sem parar. O voto de um era no Maluf e o de outro, no Lula.

Foi o garoto já grande o último a ver o pai vivo, no hospital, uma hora antes que partisse. Pressionado pelas enfermeiras para deixar a UTI, sentiu que era o fim. Pediu ao pai que se lembrasse da infância na fazenda e do longo caminho que percorria para ir à escola, pelo mato, quando pequeno. Recordar a montanha em que morava e os jogos que inventava nas três horas que tinha de andar para receber educação. Afagou a cabeça do pai como se aquele velhinho fosse filho seu.

Mesmo nesse último momento no hospital, as caminhadas em busca daquele pai jovem, tão diferente do seu, não lhe voltaram à mente. Recordou suas aventuras quando mal conseguiu abafar o riso enquanto literalmente babava dentro de um tubo de plástico, para colher o material para um teste de DNA.

O tal teste não tinha relação com qualquer dúvida de infância. Foi um pedido de uma prima paterna, que queria descobrir se a família carregava o gene de determinada doença. A resposta só viria se o teste fosse feito num parente da mesma geração, do sexo masculino.

O resultado do exame não foi de muita ajuda. Inconclusivo. No entanto, o DNA revelou que ele realmente era primo de sua prima. O que também fazia dele filho inconteste de seu pai.

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