Leticia Wierzchowski

O batom vermelho

25 / fevereiro / 2016

Sempre fui uma excelente aluna mas, ao terminar o colégio, decepcionei-me pois não entrei na faculdade. Tinha feito apenas o vestibular da UFRGS. Quando o listão veio sem meu nome, prometi a mim mesma que, no ano seguinte, estaria entre os primeiros colocados. Assim, matriculei-me num cursinho e meti a cara nos livros.

Durante vários meses, estudei por mais de dez horas diárias. Quando enfio uma coisa na cabeça, sou meio maluca — naquele tempo, criei uma regra: copiava fórmulas e conceitos, colando-os por paredes, gavetas e recantos do meu quarto. A regra era nunca passar por um desses papéis sem lê-lo, de forma que, para vestir um agasalho ou pegar uma bolsa, eu antes tinha que enfrentar fórmulas de física, regras de português, três ou quatro equações matemáticas.

Bem, foi um tempo em que eu demorava bastante para me vestir. Porém, acordando cedo o suficiente para ler toda aquela papelada, eu me arrumava, lascava um batom vermelho nos lábios e ia para o cursinho. Como era muito atenta, fui convidada a integrar o grupo dos alunos que tinham aulas extras, aqueles considerados capazes de passar no vestibular com louvor. Eu estudava tanto que, tendo entrado no cursinho a fim de cursar arquitetura, já pensava em trocar para medicina, pois a turma dos crânios era quase toda de aspirantes a médicos. Enfim, o ano em que me matei de estudar foi também o ano do Plano Collor, uma época financeiramente desastrosa para nossa família. Recordo que, muitas vezes, saía mais cedo de casa e caminhava até o cursinho — era um jeito de fazer exercício e também de economizar a grana da passagem, que renderia um cinema no sábado.

Certa manhã, numa segunda-feira, venci as dezenas de quadras até a aula e, meio atrasada, sentei-me no meu lugar habitual lá no fundo. Por causa da pressa, esquecera-me de aplicar o batom vermelho. Então, o professor de matemática começou a sua aula — era um cara engraçado, falador e envolvente. Em determinado momento, viu-me lá no fundo e gritou:

— Ah, não! Sem o batom vermelho?! E numa segunda-feira? Vai nos dar azar a semana inteira! Pararei a aula até que a senhorita faça o favor de aplicar o nosso batom.

Foi uma risada geral.

Quase morri de vergonha, mas saquei o batom da bolsa, surgiu um espelhinho de uma colega e a aula seguiu seu curso. Alguns meses depois, a UFGRS publicou uma pequena lista de segunda chamada e meu nome estava lá. Eu ficara em centésimo primeiro lugar, e um aluno desistira. Entrei, portanto, para arquitetura. Foi uma passagem breve, e sempre me ficou a dúvida de como teriam sido as coisas se eu tivesse terminado o cursinho e prestado o tal vestibular para medicina. Mas aí, então, seria outro enredo para esta minha vida. Quanto ao batom vermelho, nunca mais usei.

Comentários

2 Respostas para “O batom vermelho

  1. Texto gostoso,quando percebi já estava rindo ,abraços.

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