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O escândalo de escutas ilegais que derrubou um dos maiores jornais do mundo

29 / janeiro / 2016

Por Miguel Conde*

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“Obrigado e tchau.” Com essa manchete fofinha, quase um #gratidão, o News of the World chegou às bancas em 10 de julho de 2011, anunciando a seus leitores o próprio fim. Encimada pela despedida singela, a derradeira edição do maior jornal dominical da Inglaterra vendeu 3,8 milhões de exemplares. O enterro do Screws of the World (em bom português, Trepadas do Mundo, e não “parafusos”, como sugere o tradutor do Google), apelido que o indiscreto tabloide nunca deixou de honrar, nada tinha a ver com problemas de circulação. Era um ato de contrição, reiterado uma semana depois por um anúncio de página inteira publicado nos principais jornais britânicos. “Sentimos muito”, dizia a mensagem, iniciando um lamentoso mea-culpa assinado pelo proprietário do segundo maior conglomerado midiático do planeta, o magnata australiano Rupert Murdoch.

Penitência pública incomum para um signatário tão poderoso quanto beligerante, conhecido por administrar aos rosnados o império formado por rádios, canais de TV, estúdios de cinema, editoras e mais de cem jornais e revistas ao redor do mundo. Tampouco eram triviais, porém, os delitos que o anúncio pretendia redimir. Acostumado a expor os segredos alheios com estardalhaço, enquadrando casos de corrupção, brigas de família, prontuários médicos ou inconfidências sexuais sob a rubrica comum do divertimento escandaloso, o News of the World foi a pique após uma série de investigações e reportagens demonstrar que parte considerável daquilo que o jornal publicava em nome do “interesse público” era apurado por meio de métodos criminosos. Quando Murdoch enfim levantou a bandeira branca da rendição, 33 empresas já haviam anunciado um boicote de anúncios ao jornal, cujas práticas foram descritas por uma delas, a Mitsubishi, como “inacreditáveis, indizíveis e desprezíveis”.


valetudograndeNo recém-lançado Vale-tudo da notícia, o repórter britânico Nick Davies conta em detalhes como desvendou os crimes que alimentavam as manchetes do News of the World e acabaram por decretar a morte do jornal. Um dos mais respeitados jornalistas investigativos do Reino Unido, Davies passou anos apurando a série de reportagens que colocou a imprensa sensacionalista da Inglaterra contra a parede ao mostrar como o semanário de Murdoch empregou detetives particulares condenados pela Justiça, subornou policiais e outros servidores públicos, tapeou companhias telefônicas e conduziu suas próprias operações ilegais de espionagem para invadir a privacidade de milhares de vítimas. As informações obtidas ilegalmente eram usadas não apenas para subsidiar reportagens, mas também como instrumento de pressão para fazer valer os interesses políticos e econômicos do grupo de Murdoch junto a autoridades.

Graças às reportagens publicadas por Davies no The Guardian, e ao trabalho de outros jornalistas que seguiram a trilha aberta por ele, descobriu-se que os abusos do News of the World não se limitavam a um punhado de casos, como haviam alegado o jornal e a polícia após os primeiros indícios de irregularidades. A prática de invasão ilegal de privacidade, principalmente por meio do acesso a caixas de mensagens de telefones celulares, era rotina no tabloide e atingiu desde pessoas comuns envolvidas em algum episódio chamativo até celebridades, atletas e políticos do alto escalão do governo britânico, incluindo ministros, o diretor da Scotland Yard e o chefe do MI6, o serviço secreto do país.

Davies divide seu livro em capítulos alternados que vão contando duas histórias com períodos de tempo diferentes: uma relata sua investigação, a apuração de suas reportagens e as reações a elas; a outra constrói um histórico do crescimento dos tabloides na Inglaterra, com perfis dos principais personagens da indústria. Na segunda, além de Murdoch e seu filho, James, destacam-se dois jornalistas que tiveram rápida ascensão profissional no grupo do magnata: Andy Coulson e Rebekah Brooks. Ela começara a trabalhar no News of the World como secretária, em 1989, e onze anos mais tarde se tornara a diretora de redação do semanário. Aos 43 anos, era a pessoa mais jovem a comandar uma redação no Reino Unido. Depois que Brooks saiu para assumir o comando do The Sun, o irmão gêmeo de circulação diária do News of the World, Coulson foi escolhido como seu sucessor.

Quando Davies começou a apurar a história, o autor recorda, Coulson começava a trilhar uma bem-sucedida carreira política. Ele havia renunciado ao posto no jornal de Murdoch em 2007, depois que uma investigação policial levou à condenação do araponga Glenn Mulcaire e do repórter do News of the World Clive Goodman pela interceptação de mensagens da família real britânica. Alegando não saber de nada, e contando nos bastidores com o apoio de Murdoch, em pouco tempo Coulson deu a volta por cima, assumindo, alguns meses mais tarde, o posto de diretor de comunicação do Partido Conservador da Inglaterra. Com a chegada ao poder da coalização liderada por David Cameron, em 2010, Coulson tornara-se o porta-voz do governo, um integrante da cúpula da administração federal com acesso direto ao primeiro-ministro e a informações confidenciais do Estado.

Coube a Davies desmontar a versão oficial de que Goodman era um caso isolado no News of the World e Coulson, vítima de um subordinado que havia traído sua confiança. Abandonando a posição de mero observador da história, ele estimulou possíveis vítimas das invasões a acionarem a Justiça, obrigando a Scotland Yard a liberar as informações obtidas na prisão do detetive Mulcaire, que eram mantidas sob sigilo. A pressão nos tribunais e a colaboração com outros órgãos de imprensa, como a BBC e o The New York Times, acabaram demonstrando o envolvimento direto de homens de confiança de Coulson nas práticas ilegais do News of the World. Coulson renunciou ao cargo em 2011 e a polícia teve que abrir uma nova investigação do caso. A história, a princípio noticiada com cautela por boa parte da imprensa, tornava-se enfim um grande escândalo nacional.

A pressão sobre Murdoch só chegou ao nível máximo, porém, depois da revelação, feita em julho de 2011, de que o News of the World havia invadido a caixa de mensagens de Milly Dowler, uma adolescente que tinha desaparecido em março de 2002 em Surrey, sendo encontrada morta meses depois. O caso provocara uma comoção na Inglaterra, e a indignação cresceu nos dias seguintes quando se soube que o jornal também invadira os telefones de parentes de vítimas dos atentados a bomba em Londres em julho de 2005, e de soldados mortos no Iraque e no Afeganistão. David Cameron determinou a abertura de um inquérito público sobre a conduta ética da imprensa britânica, e Murdoch teve que desistir da aquisição do controle da principal operadora de TV digital do Reino Unido, a BskyB. Brooks e outros altos executivos da News Corp, o conglomerado de Murdoch, renunciaram aos seus cargos.

Davies povoa seu livro com figuras secundárias que dão um colorido burlesco ao universo dos jornais sensacionalistas ingleses. Pessoas como Benji, “o homem do lixo”, um sujeito que percorre as ruas de Londres de madrugada, numa caminhonete, examinando sacos de lixo em busca de informações que possam ser vendidas aos tabloides. Ou Sean Hoare, o repórter do News of the World que descrevia seu trabalho como “ingerir drogas com celebridades” e gostava de começar o dia com o que chamava de “café da manhã das estrelas”: uma carreira de cocaína e uma dose de Jack Daniel’s. É na cúpula da News Corp, contudo, que estão os grandes personagens do livro. Entre eles, o papel de protagonista cabe a James Murdoch, um propagandista incansável das leis do mercado e da livre concorrência que no entanto faz de tudo, ao longo da história, para usar o peso das empresas da família para pressionar os políticos ingleses e obter vantagens comerciais.

Se o “vale-tudo” do título do livro a princípio parece apenas uma referência às atividades ilegais dos jornais ingleses, ao final percebe-se que Davies propõe uma discussão mais ampla sobre os conflitos entre a busca pelo lucro, que James Murdoch defende num discurso ser a única garantia de uma imprensa livre, e o interesse público que deve orientar a atividade jornalística. Mais do que o relato detalhado de como um dos maiores jornais do mundo se tornou uma organização criminosa, Vale-tudo da notícia é um alerta inteligente e bem informado de que a concentração empresarial e a falta de regulação efetiva do setor jornalístico podem ser ameaças tão sérias à imprensa livre quanto o controle exercido por juízes ou governantes autoritários.

link-externoLeia um trecho de Vale-tudo da notícia

 

Miguel Conde é jornalista, editor e crítico literário. Foi colunista e editor-assistente do suplemento literário “Prosa”, de O Globo, coordenador editorial da Rocco e curador de duas edições da Flip. Atualmente, cursa o doutorado em literatura e cultura na PUC-Rio.

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