Clarice Freire

Meu olho e os pontos de vista

21 / janeiro / 2016

21.01

Num fim de tarde desses, eu estava no trânsito, parada, claro, dentro do táxi. Nada além da normalidade, tendo em vista que estranho seria se o tráfego estivesse fluindo bem, assim como minhas ideias meio claras, meio escuras, se identificavam com aquela hora de despedida do dia.

Comecinho de noite. Havíamos andado uns dois metros, o taxista e eu, entre um resmungo do meu amigo motorista e um “é verdade, amigo” meu, mesmo que não achasse verdade e tivesse respondido por pura indisposição de iniciar um debate socioexistencial-político que todo taxista insiste em travar comigo.

Às vezes me pergunto se minha cara é convidativa a esse tipo de assunto — que sempre termina com a análise do quanto tudo está errado e que deveríamos fugir para as montanhas, segundo eles. Confesso que algumas vezes tento não a deixar tão visível assim, a minha cara atrás do banco.

Alguns amigos já disseram que tenho cara de confessionário, e não foram poucas as vezes que, de fato, me preocupei com a vida de taxistas calvos que desabafavam suas angústias. Tudo bem. Normalmente o faço com prazer. Só não posso deixar de concluir que provavelmente tiveram uma boa visão da minha expressão “convidativa” pelo retrovisor.

Felizmente, porém, naquele meu dia de pensamentos tão emperrados quanto o tráfego da cidade, meu novo amigo era um bocado silencioso e seus resmungos, percebi, eram claramente para ele mesmo e as pessoas ao redor, como se estivessem ouvindo.

Caminhamos mais uns cinco milímetros, e nada era mais interessante que meu celular. Alguém ali me chamava. Alguém postava uma foto filtrada. Tudo estava parado; ao menos por ali havia algum movimento. Levanto os olhos apenas para checar a situação da minha vida em quantidade de carros à minha frente, tentando calcular o tempo que levaria até meu destino.

Em alguns segundos, uma cena se desenrola diante de mim. Tão estranha que em questão de um instante meu celular já havia caído nas minhas pernas e eu estava, sem perceber, posicionada como uma criança no banco de trás: sentada no meio do banco de trás, com as mãos em cada um dos bancos da frente. O taxista exclama:

— Olha, moça!

Eu já estava olhando.

Entre os carros parados na via, à nossa direita, um homem simplesmente abandona o seu de qualquer maneira e sai correndo, passando pelo nosso táxi e se dirigindo, decidido, para a via à esquerda, que fluía no sentido contrário à nossa.

À sua frente, outro homem rechonchudo pedalava uma bike, fugindo do homem que abandonou o carro loucamente.

Tão desesperado o ciclista bem alimentado estava, não viu um carro vindo com tudo em sua direção. Um enorme pipoco ecoa da colisão entre os dois. Barrigudo para um lado, bicicleta para o outro, o homem abandonador de carros espera o desfecho, como todos nós.

Rechonchudo no chão, bicicleta destruída.

Homem do carro abandonado percebe que o ciclista encorpado está bem vivo, apesar de manco, e resolve continuar sua perseguição, agora em clara vantagem, tendo em vista que seu alvo estava aparentemente imobilizado no chão.

“Coitado!”, pensei. “Levanta, corre!”, torci irracionalmente. Já estava no time do ciclista simpático, fraco e oprimido. O homem do carro estava claramente louco.

O rechonchudo acidentado percebe a vinda do seu perseguidor e, milagrosamente, se levanta sem dar atenção à bicicleta perdida ou à sua perna manca, começa a gritar “Socorro! Socorro! Ajuda!” e os carros à minha frente resolvem andar.

Viro para o taxista:

— Moço, o senhor viu? Que homem maluco! Abandonou o carro e ia bater num coitado estirado no chão. Que horror!

— Não, senhora. A senhora não viu, não?

“Claro que vi”, pensei. “Ninguém engana meus olhos.” Ele continua e me explica o que viu: na sua visão, o bolota da bike havia assaltado o homem do carro. Pegou o celular e fugiu sem olhar para onde ia, pedalando apressadamente. Nesse momento, o roubado do carro pressupõe o atropelamento iminente e abandona seu veículo gritando “Pega ladrão!”, na esperança de recuperar o que era seu. Acontece a colisão. Com o ladrão estirado no chão, estava tudo perfeito para recuperar seu pertence roubado. O ladrão, vendo que a coisa estava feia para seu lado, apela para gritos de socorro, tentando incriminar sua vítima, que continua a gritar “Pega ladrão!”. Os dois correm para longe da nossa vista. Nunca saberemos como tudo terminou, porque, obviamente, o trânsito resolve andar tudo que não andou durante todo o tempo anterior.

Volto para minha posição e fico pensativa, enquanto me recupero da sucessão de sustos que tomei em duas frações de segundos. O taxista me afirma que vê esse tipo de cena todos os dias, enquanto devo ter contado esta história extraordinária para todas as pessoas que encontrei naquela noite. Portanto, prefiro acreditar na versão dele. Na verdade, é fácil enganar os olhos de gente distraída e facilmente tomadora de partido como eu, especialmente se estamos falando de um pobre ciclista atropelado. Para minha decepção, estamos falando de um ladrão fugitivo.

Passei o resto do caminho pensando como, em questão de poucos instantes, as coisas mudam, pois saí do total congelamento das ideias e do trânsito para uma cena digna de filme. Mas vi um filme e meu amigo taxista viu outro completamente diferente. O meu tinha um mocinho e um bandido; o dele também, só que ao contrário. Não gosto de nada que venha com “a moral da história”, porque não acredito que histórias tenham a mesma moral para olhos diferentes. Não tirei conclusões nem lições de vida desse episódio.

Apenas penso no quanto os pontos de vista podem mudar em cada ponto ou ligar os certos aos errados — ou seriam os errados aos certos? — para contar um ponto do conto que contei, avistei, vi e recortei a partir do que, no fim, acreditei. Meu olho olhou, outro viu, me contou e a história mudou. Mesmo tendo meu olho olhado. E poderia nem ter visto, só escutado.

Então meu ponto mudaria de lado?

Minha moral da história só tem uma palavra, um conselho bem ou mal-olhado: cuidado.

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