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Eu sou Spartacus: Dalton Trumbo, o começo e o fim da lista negra

21 / janeiro / 2016

Por Ana Maria Bahiana*

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No outono norte-americano de 1998, eu estava dirigindo pela avenida Wilshire, na altura da sede da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, quando notei uma peculiar aglomeração na calçada em frente ao prédio. Um grupo animadíssimo, com cartazes e até um alto-falante, andava metodicamente em círculo, de tempos em tempos gritando palavras de ordem: “Não esqueceremos!” e “Lista negra, jamais!”. Deviam ser, no máximo, umas vinte pessoas. Nenhuma aparentava ter menos que 75 anos.

No dia seguinte a revista Variety explicava tudo: tratava-se de integrantes da academia e alguns amigos protestando contra a escolha de Elia Kazan para receber o prestigioso Oscar honorário pelo conjunto da obra. Em 1952, Kazan, um mestre realizador, responsável por obras-primas como Um Bonde Chamado Desejo, Viva Zapata! e Sindicato de Ladrões, compareceu diante do Comitê de Atividades Antiamericanas do Congresso norte-americano e, sob juramento, denunciou vários colegas de ofício por terem sido (como ele) membros do Partido Comunista dos Estados Unidos. O comitê já tinha conhecimento desses nomes, mas a atitude de Kazan marcou-o até o fim de seus dias.

Num país que preza a liberdade de expressão e se orgulha de oferecer e proteger os direitos de seus cidadãos, as atitudes do Comitê de Atividades Antiamericanas do Congresso entre 1947 e 1959 são uma notável aberração. Criado em 1938 para investigar agentes nazistas possivelmente infiltrados nos Estados Unidos, o comitê assumiu, depois da Segunda Guerra Mundial, um tom paranoico de perseguição ideológica, correndo paralelo à intensificação da Guerra Fria.

Dois fatores tornavam as artes — especialmente o cinema — particularmente vulneráveis à perseguição do comitê: a Grande Depressão dos anos 1930 e o início do movimento sindicalista nos Estados Unidos colocaram as questões sociais no centro do debate intelectual e artístico, levando muitos atores, atrizes, escritores, cineastas e intelectuais a se filiarem ao jovem Partido Comunista dos Estados Unidos; e desde suas origens no início do século XX  a indústria de cinema se mantivera decididamente independente, não aceitando interferências do governo, regulando a si própria e acolhendo tanto artistas e intelectuais europeus progressistas quanto os jovens norte-americanos entusiasmados pelas causas sociais, muitos filiados ao Partido Comunista.

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Um deles era James Dalton Trumbo. Nascido no Colorado, numa família descendente de imigrantes suíços, Trumbo trabalhou como repórter para jornais locais da cidade de Grand Junction, Colorado, antes de se mudar para Los Angeles a fim de cursar a universidade (para pagar seus estudos, Trumbo trabalhou no turno da noite de uma padaria). Em 1937, depois de alguns anos atuando como jornalista e crítico de cinema, Trumbo começou a escrever para o cinema e rapidamente se tornou um dos roteiristas mais bem pagos da época — sobretudo depois que seu livro Johnny Got His Gun, um libelo antiguerra, recebeu o National Book Award em 1939.

Como muitos de seus amigos e companheiros de trabalho — inclusive Elia Kazan —, foi nessa época que Trumbo se filiou ao Partido Comunista. A Segunda Guerra Mundial, alinhando Estados Unidos e União Soviética contra Alemanha, Itália e Japão, permitiu um momento de paz à esquerda norte-americana. Na verdade, Hollywood produziu vários filmes pró-URSS durante a guerra, com títulos como Canção da Rússia e Missão em Moscou.

Tudo mudaria nos anos seguintes, com Estados Unidos e União Soviética polarizados na tensa Guerra Fria, e o Congresso norte-americano dominado por conservadores apavorados com a ideia de uma “infiltração vermelha” no próprio coração da América do Norte. Especialmente na indústria de cinema, agora a maior fonte de entretenimento do país — e, cada vez mais, do mundo.

Em julho de 1946, uma coluna na revista Hollywood Reporter, escrita e assinada por seu fundador, William Wilkerson, bradava contra a presença de “discípulos de Stalin” entre os profissionais da indústria de cinema e mencionava explicitamente Dalton Trumbo e nove outros profissionais. Um ano depois, o Comitê de Atividades Antiamericanas do Congresso intimou os “10 de Hollywood” a depor — ou seja, delatar outros. Eles se recusaram, alegando seus direitos constitucionais à liberdade de expressão. Foram presos por desacato à autoridade.

Washington, DC, USA --- Original caption: 10/27/47-Washington, DC: The group of Hollywood writers and producers summoned to appear before the House Un-American Activities Committee in probe of communism in the film city, are shown as they left the investigation late today. Front row: Lewis Milestone, Dalton Trumbo, John H. Lawson, who was cited for contempt, and Bartley Crum, attorney for witnesses. Center row: Gordon Kahn, Irving Pichel, Edward Dmytryk, Robert Rossen. Top row: Waldo Salt, Richard Collins, Howard Koch and Albert Maltz; Herbert Biberman; Lester Cole and Ring Lardner, Jr., writers and Martin Popper, another attorney for the group. Photo by G.B. Kress --- Image by © Bettmann/CORBIS

Image by © Bettmann/CORBIS

Começava ali um longo período de obscurantismo. Outros foram intimados e, como Kazan, compareceram para depor. Os estúdios prepararam uma “lista negra” contendo os nomes citados pelo comitê — profissionais que, a partir daquele momento, eram “indesejáveis”. Muitos, entre eles Charles Chaplin, Orson Welles e a roteirista Norma Barzman (que conheci na passeata em frente à academia…), optaram por sair do país, indo trabalhar na Europa e na América Latina. Outros, como o compositor Elmer Bernstein, foram obrigados a aceitar salários de fome e trabalhos anônimos. Outros ainda, como Trumbo, passaram a usar pseudônimos em suas obras (dois roteiros de Trumbo com nomes alheios ganhariam o Oscar — A Princesa e o Plebeu, em 1954, e Arenas Sangrentas, em 1957).

No final da década de 1950, com a ala liberal em ascensão, o Comitê de Atividades Antiamericanas do Congresso já havia perdido muito de sua força política. O golpe mortal na lista negra veio em 1960, com um simples gesto de um profissional: Kirk Douglas, estrela e produtor de Spartacus, dirigido por Stanley Kubrick, recusou-se a ocultar o nome de seu roteirista nos créditos — Dalton Trumbo.

untitledNuma das cenas mais eloquentes de Spartacus, o general romano vivido por Laurence Olivier oferece misericórdia aos escravos derrotados em seu levante em troca da delação de seu líder, Spartacus (Kirk Douglas). Todos se recusam, bradando, um a um: Eu sou Spartacus!

PS: Flash-forward para 1999. Apesar do apoio de gente mais jovem e mais poderosa, o boicote do pessoal na frente da academia não deu resultado. Aos noventa anos, Elia Kazan recebeu seu Oscar honorário, apresentado por Francis Ford Coppola e Robert De Niro. Em seu discurso, agradeceu à academia “por sua coragem e generosidade”. E eu conheci Norma Barzman e a turma mais sensacional de octogenários de Hollywood.

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Leia um trecho de Trumbo: a vida do roteirista ganhador do Oscar que derrubou a lista negra de Hollywood

 

 

*Ana Maria Bahiana é jornalista, autora, pesquisadora, produtora e tem uma longa e prestigiosa carreira no Brasil e no exterior, em imprensa, rádio, televisão e internet. Residente de Los Angeles há duas décadas, é editora associada do site goldenglobes.com e já entrevistou nomes como Kathryn Bigelow e Francis Ford Coppola.

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