Clóvis Bulcão

Até na culinária

7 / dezembro / 2015

Quem já leu Os Guinle — A história de uma dinastia tomou conhecimento das muitas contribuições praticadas pela família para o desenvolvimento do Brasil moderno. A lista abrange diversas áreas: futebol, automobilismo, turfe, música, teatro, ensino superior, arquitetura, entre outras. Mas acabo de ficar sabendo de algo que considerei inusitado. O legado dos Guinle passa também pela gastronomia e, sobretudo, pela afirmação da feijoada como um dos principais pratos brasileiros.

Ainda não existe um livro definitivo sobre a história da feijoada. Em geral, conta-se nas escolas que ela é um legado africano. Essa tese, porém, é cada vez mais contestada. O feijão preto é nativo do continente sul-americano e já fazia parte da dieta de nossos indígenas. Nunca é demais lembrar que os negros escravizados que desembarcaram no Brasil eram, em sua maioria, seguidores do islã. Portanto, por motivos religiosos, nunca comeriam carne de porco.

Além disso, a combinação de feijão com carne é comum na Europa. Os portugueses comem cozido com feijão; entre os franceses, o famoso cassoulet é uma mistura de feijão branco com carnes diversas. O certo é que o feijão já era um prato bem conhecido no início do século XIX. É sabido, por exemplo, que Dom Pedro I, homem de hábitos simples, adorava feijão com arroz. Segundo o pintor francês Jean-Baptiste Debret, que retratou o Brasil Colônia em suas aquarelas, a refeição de uma família carioca modesta se compunha de carne seca e feijão preto.

Sendo o Brasil um país colonizado pelos europeus, nossa gastronomia sempre se inspirou em suas receitas. A primeira matriz foi lusa e a segunda, francesa. Basta dar uma olhada nos cardápios dos restaurantes do fim do século XIX e início do XX. A influência era de tal ordem que eles nem eram apresentados em português. Os brasileiros não sabiam o significado, mas comiam hors-d’oeuvre, Galantine à Province de Minas e dinde aux marrons.

Esse quadro seria alterado apenas em 1946. Após o fechamento do cassino do Copacabana Palace, Octávio Guinle abriu em seu hotel uma espécie de boate, o Meia-Noite. O novo espaço deveria segurar na casa o público que saía dos shows do Golden Room, por isso precisava oferecer algo original. E foi na culinária que ele resolveu investir, rompendo com a ditadura da gastronomia francesa e apostando em pratos mais nacionais.

O Meia-Noite criou então, entre outras novidades, o picadinho na ponta da faca, servido com farofa e ovo e em prato de barro. O sucesso foi tamanho que Octávio e sua equipe resolveram ousar ainda mais, servindo feijoada. Não bastasse o atrevimento, ela era acompanhada de batida de limão. Ora, na época, a cachaça era proscrita dos ambientes sofisticados — como a comida, a bebida considerada boa era a importada.

Foi assim que esse ícone da cozinha brasileira mudou de endereço. Dos restaurantes populares, passou a frequentar também salões de luxo. Ainda hoje, nos hotéis cinco estrelas do Rio de Janeiro, a feijoada, consumida com batida de limão, é a estrela nos almoços de sábado.

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