Leticia Wierzchowski

Sobre o fim do amor

23 / outubro / 2015

 

The Way We Were

Você passa anos com uma pessoa. Anos. A ponto de misturar-se a ela. Vocês já são um híbrido de si mesmos, como duas cores que formam uma terceira. Como dois elementos da tabela periódica se misturam formando um novo, vocês são reativos, afins, um desdobramento. Às vezes ela pensa numa ideia, mas nem pode mais concluir sozinha se a ideia é boa. Precisa dele. Às vezes ele quer dormir, mas não consegue pegar no sono, porque ela não está. Não é só o corpo; é o calor. Vocês estão acostumados um com o outro, como o colchão está acostumado com os dois. Ele começa a frase, ela termina. Ele compra o livro, mas quem lê é ela. As brigas também são assim. A culpa é ora de um, ora de outro. Vocês se complementam no amor e na guerra.

Como duas partes de uma mesma coisa, existe um lado que encaixa, outro que desencaixa. Nem os dois lados de um mesmo rosto são totalmente simétricos. Nem os dois seios de uma mulher. As duas nádegas de um homem têm certa diferença. As digitais da mão esquerda não são iguais às da direita. Porque toda igualdade guarda uma desigualdade. Como a vida guarda a morte. Como do dia é que vem a noite. O que se complementa, se desdobra, se recria, se transforma. E, às vezes, se desencaixa.

Você passa anos com uma pessoa e, então, bum! Os grandes romances estão cheios disso. O cinema faturou milhões. De repente você tem que se redescobrir — literatura e cinema já falaram disso também. E muito. Do que você gostava mesmo: massa ou carne? Tolstói ou Eça de Queiroz? Dormir até tarde ou correr de manhã cedo? Um travesseiro ou dois? Serra ou mar? Vinho ou cerveja? Você passa anos com uma pessoa e, de uma hora para outra, a vida dá uma guinada — os anos e as pessoas nos transformam. Ainda bem. Mas, sob o verniz do outro, você ainda é o que é. Atrás de todas as lembranças, de todas as viagens, de todo o sexo na sala e de todas as brigas no quarto. Você ainda é o que é. E o outro também.

Cada um irá para o seu lado, levando metade das coisas e a própria versão da história. E o tempo vai passar. Você vai evitar algumas esquinas. Alguns amigos o evitarão. Certas datas serão um saco. Algumas noites serão incríveis. Mas, numa madrugada — talvez chuvosa, talvez enluarada —, num supermercado ou numa caminhada à beira-mar, num jardim entre roseiras ou num coquetel em meio a desconhecidos, a saudade vai bater. Como um soco na cara, uma dor no peito, um infarto, uma lágrima de sal. Ou não.

Os grandes romances estão cheios disso. O cinema faturou milhões. Compositores inspiram-se nisso todos os dias. Mas só você sabe como é. E como não é.

 

Imagem: Nosso amor de ontem (The Way We Were – 1973), filme dirigido por Sydney Pollack, com Barbra Streisand e Robert Redford. Separe alguns lenços, mas vale a pena.

Comentários

2 Respostas para “Sobre o fim do amor

  1. Amei! Letícia, você é fantástica, amo seus livros e seu jeito de escrever. Obrigada!

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