Clarice Freire

O senhor do meu tempo (dos outros)

8 / outubro / 2015

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Tive um relógio que custou dez reais. É. Dez reais. Adoro coisa barata. O problema é que eu teria que ser uma criatura cuidadosa para que isso garantisse alguma durabilidade aos meus pertences. Mas sou tão cuidadosa quanto um hipopótamo diante da seção de cristais em uma loja de antiguidades. Ou uma vaca correndo, como me comparou poeticamente o meu pai, ao me ver esbarrando em todos os objetos da casa. As coisas não duram muito comigo. Graças a Deus estou falando apenas de coisas.

O meu relógio, voltemos a ele, que já foi dourado, agora tinha um charme desbotado só seu – óbvio. Quem mais derramaria águas e perfumes em cima dele quase todos os dias sabendo que não é à prova nem de lágrimas? Mas quem é à prova de lágrimas? Que exigência terrível! — e ele parou de funcionar.

“Foi a bateria”, pensei com esperança. Não queria me desfazer dele. Era cedo demais. Fui até o relojoeiro mais próximo de casa e entreguei meu tesourinho saído do pulso. Havia uma mulher, um jovem e o senhor que usava um jaleco e óculos na ponta do nariz. Um jaleco. E ele examinava minuciosamente o meu relógio com uma cara estranha. Imaginei que ele estivesse pensando “qualquer coisa que eu fizer aqui vai ser mais cara que isso”. Já formulava uma resposta desaforada, meio nervosa, quase perguntando “é grave, doutor?”.

Mas ele não parecia desprezar meu relógio pelo preço. Pelo contrário. Parecia respeitá-lo e tinha a delicadeza de alguém que manuseia pétalas de uma rosa.

Uma coisa tão estranha.

Comecei a ficar hipnotizada com os nós dos dedos nodosos daquele senhor quase careca. Pareciam mesmo saber controlar o tempo.

Ele controlava o tempo.

Agora eu já fazia uma lista de pedidos pessoais ao senhor e pensava como persuadi-lo a me atender.

Para ganhar tempo (ou perder?) olhei em volta. Não havia ainda parado para observar a loja ao meu redor por estar preocupada demais com o funcionamento – ou não – do meu contador de minutos. Quantos e quantos relógios espalhados. Nem uma brecha em nenhuma das paredes, só relógios. Modernos, de madeira, antigos, analógicos, digitais, rebuscados, simples, ocupando todo o espaço. No balcão, peças: pulseiras, ponteiros, vidrinhos. Tudo ali girava em torno do tempo que girava e girava através dos ponteirões do relojão à minha frente.

Nenhum relógio marcava a mesma hora. Todos tinham uma hora só sua. Um tempo só seu. Seriam correspondentes aos seus donos? Cada um tem seu tempo, me ensinaram. É verdade.

Vi o quanto, de fato, ele é relativo.

Voltei para o doutor do meu. Notei que os funcionários não faziam nada sem perguntar a ele que, ao sussurrar algo inaudível sem tirar os olhos do meu relógio, os outros colocavam em prática. Um verdadeiro senhor do tempo. Agora eu respeitava ainda mais o ancião carequinha.

O senhor do tempo não tinha preconceitos, respeitava o tempo de cada um, não havia mudado nenhum. Tratava com louvor o meu tempinho pobre e de brilho cansado.

O senhor do tempo ignorava qualquer outro apressado com seus contadores de segundos nas mãos, esperando sua vez, porque aquele tempo era meu. E não valia nem dez reais, mas o senhor do tempo não estava preocupado com preço, só fazia um balé com as mãos, cheio de apreço.

O senhor do tempo levantou os olhos por cima dos oclinhos de meia-lua para mim. Muito sério. Esperei o veredicto.

— Olhe, senhorita, posso trocar a bateria, é só esse o problema. Mas a pulseira não dá, nem posso melhorar o brilho, isso só em uma autorizada.

— Autorizada? Mas, senhor, essa bugiganga não vale nem dez reais.

Ele olha para baixo meio divertido.

— Eu sei.

—  Por que disse isso?

Perguntei sorrindo sinceramente.

— Porque você o trouxe pra mim, então se importa com ele, não é? Não ia tratá-lo como qualquer coisa na sua frente. Vai saber. Também não tenho a pulseira, me desculpe. Você quer a bateria? Custam quinze reais.

— Sim, por favor.

Ele agora sorria para dentro. Era um homem de pouquíssimas palavras. E lá foi ele fazer uma pequena cirurgia e colocar um novo coração dentro do meu tempo, que saiu muito disposto da relojoaria, pronto para me mostrar perfeitamente a minha vida passando rápido, voando, por dentro dele. E que, por favor, eu tivesse a fineza de respeitar —delicadamente bem — o tempo dos outros ponteiros.

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Comentários

4 Respostas para “O senhor do meu tempo (dos outros)

  1. adoro,seus textos você é ótima te vi na Bienal do rio,sucesso mais e mais.abraços.

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