Bastidores

Por trás do distintivo

12 / agosto / 2015

Por Josué Oliveira*

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Pode parecer estranho, mas a polícia nem sempre teve grande importância na literatura policial como a designação do gênero sugere. Nos Estados Unidos, por exemplo, usa-se crime fiction (“ficção criminal” ou “de crime”), um termo mais amplo, que admite diversas variações internas. Na prática, essa crime fiction, ou o que conhecemos no Brasil como romance policial, é um espectro amplo de obras que focam, de alguma forma, no crime e na busca pela sua solução.

Durante muito tempo, a figura do policial esteve relegada a um lugar de pequena importância. Em histórias protagonizadas por Sherlock Holmes, Hercule Poirot, Miss Marple e outros grandes detetives da Era de Ouro (período entre 1920 e 1930, em que foram publicados alguns clássicos do gênero), o policial era a pessoa cujo intelecto não se comparava ao do protagonista, o agente da lei que precisava do auxílio de outra pessoa para desvendar o crime. Nos anos subsequentes o policial hardboiled se popularizou. Surgido nos anos 1920 nos Estados Unidos, esse subgênero caracteriza-se por histórias mais cruas e violentas em que o policial assume uma figura digna de desconfiança, a serviço de uma instituição gananciosa e corrupta. Segundo alguns especialistas, somente a partir da década de 1950 esses personagens passaram a receber um tratamento mais respeitoso e aprofundado.

Um bom exemplo dessa virada é a duradoura série 87º Distrito Policial, publicada pelo americano Ed McBain de 1956 até sua morte em 2005. Nela, McBain retratava o cotidiano de violência urbana enfrentado por policiais de Isola, cidade fictícia inspirada em Nova York. Tráfico de drogas, prostituição e conflitos entre gangues pontuavam a vida desses homens e mulheres absolutamente humanos e falhos.

lindagrandeEsse tipo de narrativa centrada no cotidiano policial acabou formando outro subgênero, conhecido como police procedural. E é nele que o lançamento Linda, como no caso do assassinato de Linda, escrito pelo criminologista sueco Leif GW Persson, se encaixa. O protagonista da trama de Persson é Evert Bäckström, superintendente da polícia de Estocolmo enviado para investigar o estupro seguido de assassinato de uma jovem na pacata cidade de Växjö.

Lendo essa descrição, você provavelmente imaginou Bäckström como um bom policial, cheio de instinto de liderança e senso de responsabilidade por seus colegas, o homem que conduzirá sua equipe à solução do crime, não foi? No entanto, trata-se de um personagem diferente. Bäckström é um homem preconceituoso, machista, egoísta e autocentrado que tenta tomar a frente da investigação porque julga todos os demais como completos idiotas. Bebe muito e late ordens para os outros enquanto, na verdade, não se movimenta muito.

Policiais problemáticos não são novidade. Agentes da lei instáveis, que bebem além da conta ou acabaram contaminados pelo ambiente de violência que os rodeia, são comuns em livros, filmes e séries de TV. Ainda assim, conseguimos acompanhá-los porque, por baixo de todos os defeitos e falhas de caráter, percebemos uma boa índole ou um desejo verdadeiro de mudança.

Por isso Bäckström é um protagonista ousado. Estamos falando de um sujeito que se sente absolutamente confortável do alto de sua arrogância e cercado por suas intolerâncias. Torcer por alguém com essa personalidade e esses valores vai contra nossos instintos. O leitor é colocado na desagradável posição de ansiar pelo sucesso de um sujeito completamente intratável para que um criminoso ainda pior que ele não fique à solta.

Para os leitores de police procedural, o trunfo de Linda, como no caso do assassinato de Linda reside na experiência do autor, que é analista de perfis psicológicos e consultor do Ministério da Justiça de seu país. Persson conhece os meandros do sistema criminal como poucos, o que confere ainda mais verossimilhança à história que conta. O romance se torna, então, policial no sentido mais literal que o termo pode ter, pois apresenta todo um universo de procedimentos de bastidores que precede o aguardado momento da reviravolta e da conclusão.

E, em meio a isso tudo, Persson ainda consegue a proeza de arrancar risadas do leitor por sua caracterização do presunçoso Bäckström, um personagem que, com sua visão do mundo tão absurda, incomoda ao mesmo tempo que diverte. Linda é um romance policial que desperta a atenção pelo mistério que apresenta e arrasta o leitor para o universo daqueles que o investigam, além de nos mostrar que nem sempre o herói é a pessoa que estamos esperando.

 

 

Josué de Oliveira é assistente de edições digitais na Intrínseca. Lê e escreve histórias policiais. Vive papagaiando sobre o assunto, às vezes é até meio chato. Colabora com o Literatura Policial, site totalmente dedicado ao gênero, e com o Colofão, onde fala sobre livros digitais.

Comentários

Uma resposta para “Por trás do distintivo

  1. Prezado Josué, seu texto é excelente! Obrigado por me apresentar mais um subgênero da literatura policial. Já estou ansioso pelo livro!

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