Viagem psicodélica

Por Miguel Sanches Neto

15 / junho / 2015

Em sua busca de uma alteridade ficcional, o escritor tenta frequentar outros tempos.

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Já viajei por instituições públicas e privadas, por empresas e projetos, mas prefiro viajar por conta (bancária) própria. Venho de umas destas perambulações sem objetivo muito definido, para um livro que ainda não sei bem o que é. Sequer se vai ser. Trajeto pelo interior: Araraquara, Matão, Dobrada, Santa Ernestina, Taquaritinga e por fim Campinas, onde dormi para fazer umas coisas mínimas na manhã seguinte e… para visitar um bar que frequento há vinte anos. Afinal, tirei minha licença na Universidade para cuidar de coisas intangíveis.

Cheguei às 11h30 ao largo do Rosário, onde está o velho prédio do Giovannetti, fundado em 1937. Fazia uns pares de anos que não ia lá. Mas assim que entrei, reconheci tudo.

— Muda pouco aqui — falei para o garçom.

Ele riu, dizendo que quase nada.

O primeiro chope chegou.

É servido num pequeno pires de louça, o que não deixa escorrer a bebida pelo chão. Gosto de beber, mas detesto o cheiro de cerveja e chope velhos. O pires permanece sobre a mesa para que o cliente saiba suas marcas etílicas. Pediu o primeiro chope, não precisa pedir mais. Cada tulipa vai sendo rigorosamente substituída.

Eu estava com o cardápio, indeciso entre tantas opções de comida de boteco e de restaurante. Pensei em iniciar com um envelope, mas não queria estragar o principal. Envelope é como o bar chama o pastel.

Depois de uns minutos de dúvida, resolvi pela repetição, escolhendo o de sempre — um Psicodélico. O bar é famoso pelos sanduíches. Está escrito na parede: “Seu avô ensinou e seu pai aprendeu: os melhores sanduíches de Campinas você encontra aqui.”

Nunca experimentei os outros, viciado no Psicodélico. Os ingredientes explicam o nome desta bomba calórica: mozarela, salsão com picles, lombo cozido, salsichão lionês, mortadela, rosbife caseiro, presunto, tomate e azeitonas pretas.

Ainda não havia acabado o terceiro chope, mas o prato chegou com outra tulipa, tudo sincronizado. O Psicodélico vem fatiado em pequenos pedaços, e vamos tirando com um guardanapo de papel cada uma daquelas porções pesadas de recheio.

No final, trazendo mais um chope, o garçom me perguntou.

– Não sentiu falta?

Fiquei em silêncio.

Sim, senti que faltava alguma coisa, talvez faltasse aquele que eu era anos atrás.

– Não fabricam mais o presunto xadrez.

(Oh, coitados dos que nunca experimentaram este presunto!)

Era apenas isto que alterara. Tão pouco e, no entanto, tão perceptível — mesmo numa época em que vamos sentindo falta de muitas outras coisas.

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Miguel Sanches Neto nasceu em Bela Vista do Paraíso, no interior do Paraná. É autor de seis romances, além de livros infanto-juvenis, contos e ensaios. Seu romance A Segunda Pátria foi publicado em 2015 pela Intrínseca.

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Comentários

Uma resposta para “Viagem psicodélica

  1. Olha só: você falou no presunto xadrez, imediatamente lembrei dele. Quando meu pai estava “abonado” trazia uma bandeja de frios e, entre eles, vinha o xadrez. O bom era comer quadradinho por quadradinho; cada vez uma cor. Pãozinho fresco, manteiga Aviação, frios e guaraná. Nada melhor.

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