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Sonhamos com Hollywood quando a vida, na verdade, é Galveston

25 / junho / 2015

Por Marcelo Costa*

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Em 1980, Nic Pizzolatto tinha apenas 5 anos e vivia com os pais em Lake Charles, cidade na Louisiana a cerca de três horas de Nova Orleans. A infância difícil com a família em uma região notadamente pobre deixou marcas profundas, algumas delas facilmente visíveis na obra de maior sucesso do hoje escritor, produtor e roteirista: a série de  TV True Detective, que estreou em 2014 e acaba de retornar com novo elenco para a sua segunda temporada. Os cenários decadentes e melancólicos que os detetives Rust (Matthew McConaughey) e Marty (Woody Harrelson) percorreram no primeiro ano da série também ambientam a boa trama de Galveston, romance de estreia de Nic Pizzolatto, lançado em 2010 nos Estados Unidos e publicado agora no Brasil.

Galveston é uma cidade real de pouco mais de 50 mil habitantes localizada na região da Costa do Golfo, no estado do Texas, próxima da fronteira com a Louisiana — a cerca de três horas da Lake Charles da infância de Pizzolatto e, também, de alguns crimes estranhos que acontecem na primeira temporada de True Detective. A trama do livro, porém, começa em Nova Orleans na segunda metade dos anos 1980. É lá que vive Roy Cody, um caubóis texano de 1,90m que “trabalha” como cobrador (uma forma poética de se referir a um matador de aluguel) e alterna seus dias entre cervejas (Coors, Lone Star, Miller High Life e Budweiser), uísques (Johnny Walker… ele odeia Jim Bean, mas bebe se for preciso) e lembranças de um coração partido.

Galveston - CAPA E LOMBADA.inddSim, Nic Pizzolatto defende em Galveston que mesmo no peito (repleto de fumaça cancerígena de cigarro) de um matador de aluguel bate um coração. No caso do nosso amigo Roy Cody, a última garota se chamava Carmen e acabou de trocá-lo por seu patrão, Stanislaw Pitko, o polaco que chefia a máfia em Nova Orleans. Imagine a situação: você é um matador de aluguel texano [para auxiliá-lo: “Sou do leste do Texas, do Triângulo Dourado, e esses caras (da turma de Stan) sempre pensaram em mim como lixo, o que é bom, porque também têm medo de mim”, conta Roy], vive um romance com uma garçonete gostosa e ela o troca pelo chefão da máfia local. Se você pressentiu confusão, está correto. E muita.

Roy e outro capanga (que por um “simples acaso” também viveu um romance com Carmen) são enviados para pressionar um homem, e o que seria um servicinho rotineiro (“Sem armas”, recomendou o chefão Stan) termina numa carnificina. Roy consegue se safar, mas, uma pessoa viu seu rosto, e ele decide levá-la consigo para tentar descobrir algo sobre aquela emboscada. O nome da garota é Raquel Arceneaux, mas ela prefere ser chamada de Rocky. É uma jovem prostituta que estava na hora errada, no lugar errado. Roy tem como lema que cada pessoa é responsável pelos próprios pecados, não dá para ficar tentando resolver os dramas dos outros, mas as duas almas errantes seguem juntas noite adentro.

Em uma velha caminhonete, com o som do cantor texano Billy Joe Shaever sobrepondo-se ao silêncio, Roy e Rocky fogem de Nova Orleans em direção ao Texas, não sem antes dar uma parada em um bar de uma pequena cidade: “Lake Charles era um dos lugares da Costa do Golfo onde era mais fácil arrumar uma briga. E qualquer lugar ao sul dali era um campo de terror caipira”, explica Roy, com a sabedoria de quem conhece muito bem a região. De Lake Charles, o road book passa por Orange, cidade em que Rocky precisa fazer uns acertos financeiros e familiares, e segue até Galveston, balneário cuja lembrança de bons dias permanece no âmago de Roy, que viveu ali um romance intenso que, algum tempo depois, fracassou.

Fracasso aparenta ser o tema preferido de Nic Pizzolatto. Seus personagens (no livro e na série) são pessoas comuns que parecem sentir algum tipo de prazer inconsciente com o erro. Se viver é acumular tristezas, Roy e Rocky estão carregando peso extra, porque a pobreza, a tragédia e a infelicidade seguem com eles como genes passados de pais para filhos. Ambos carregam todos os dramas de uma longa herança familiar de perdedores, e a mágica da vida é tentar dar algum sentido ao caos em que eles foram jogados sem opção de escolha. Reféns invisíveis de uma América que finge não vê-los, Roy e Rocky sofrem ainda mais porque foram ensinados — pelos descaminhos da vida — que não se pode confiar em ninguém, nem em si próprio.

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Woody Harrelson e Matthew McConaughey em cena de “True Detective”

Pizzolatto consegue criar suspense e expectativa sem soar óbvio ao ponderar, com sabedoria, quais informações quem lê precisa receber naquele momento da trama. O resultado funciona a contento (a busca pela obviedade, inclusive, pode passar uma rasteira em alguns) e se expande quando aliado ao universo da série True Detective. Até porque soa tentador (para quem está lendo o livro pela primeira vez agora) imaginar Matthew McConaughey no papel do matador Roy, aproximação que o brilhante Killer Joe, filme de 2011, de William Friedkin, também permite e valoriza — aliás, Juno Temple também soa uma bela alternativa para Rocky.

A narrativa de Galveston é alternada entre passado e presente, fazendo com que o leitor se sinta preso à trama conforme a história se desenrola. No começo, ele acompanha Roy e Rocky na fuga pós-emboscada. Um pouco depois, o texano é visto em uma praia brincando com uma cachorra. Ele está bem mais velho, anda mancando e usa um tapa-olho que assusta as crianças do balneário. Também parou de beber (até participa de reuniões dos AA) e adquiriu gosto pela leitura, não porque ela o torna mais inteligente, mas porque ler um livro é, segundo ele, a melhor forma de passar o tempo sem pensar em besteira. E para um homem com o extenso currículo de confusões de Roy, não pensar em besteira é um grande avanço.

Mais interessante, porém, é como o escritor consegue retratar de forma astuta um tipo de pessoa que se apega cegamente (e tolamente) a um momento da vida e o transforma em amuleto, como se todos os dias seguintes a serem vividos fossem menores. Como uma droga, a sensação inicial é de euforia, afinal a pessoa viveu aquilo. Conforme o tempo passa, porém, a memória se desgasta, e o que era um momento agradável começa a soar como um fantasma que caçoa da realidade. O passado deixa de ser real para se transformar em algo que a pessoa acredita que viveu, e a confusão nubla os pensamentos, que acabam por fim desejando algo que nunca houve. Roy é uma dessas pessoas.

Porém, o que seria de nossas vidas se não restasse uma fagulha de esperança? Nic Pizzolatto simboliza esse sentimento de forma precisa, afinal viveu uma infância pobre e traumática, mas sobreviveu aos fantasmas (dele e da família), algo que parece gostar de compartilhar com seus personagens. Matador sem remorso, mas de coração partido, que deixa (com pesar) uma coleção completa de filmes de John Wayne para trás durante a fuga, Roy Cody consegue despertar empatia porque é vítima de si mesmo e de sua própria história, ainda que a redenção seja um sonho praticamente impossível de realizar. Afinal, redenção é por demais Hollywood, e não Texas e Louisiana.

link-externoLeia um trecho de Galveston

Playlist de Galveston, de Nic Pizzolatto, por Marcelo Costa by Intrinseca on Mixcloud

01 – Billy Joe Shaver – “Good Ol’ USA”
02 – Roy Orbison – “Uptown”
03 – Glen Campbell – “Lovesick Blues”
04 – Conway Twitty & Loretta Lynn – “Louisiana Woman, Mississippi Man”
05 – Hank Williams – “Lost Highway”
06 – Willie Nelson – “I Gotta Get Drunk”
07 – Johnny Cash – “I Walk the Line [Alternate Take]”
08 – Merle Haggard – “The Fugitive”
09 – Loretta Lynn – “Trouble In Paradise”
10 – Waylon Jennings – “Just To Satisfy You”
11 – Billy Joe Shaver – “When Fallen Angels Fly”
12 – Patsy Cline – “Poor Man’s Roses”
13 – Roy Orbison – “Love Hurts”

link-externoLeia também: A metáfora da esperança de Jennifer Egan ou “Tudo começou aqui”

Marcelo Costa é editor do site Scream & Yell, um dos principais veículos independentes de cultura pop do país. Já passou pelas redações do jornal Noticias Populares, e dos portais Zip.NetUOL, Terra e iG, além de ter colaborado com as revistas Billboard BrasilRolling Stone e GQ Brasil, entre outras. Participou da Academia do VMB MTV, do júri do Prêmio Multishow e do júri do Prêmio Bravo. Desde 2012 integra a APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte).

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