CENAS DOMÉSTICAS

Por Miguel Sanches Neto

1 / junho / 2015

Entradas sem data de um diário da rotina do escritor.

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O mau marido

Passei boa parte do feriado com minha mulher e minha filha, cuidando de pequenos serviços — fui à feira e ao mercado, pendurei quadros na parede do quarto de meu filho, ajudei a fazer o almoço de domingo para uns amigos, lavei louça… Um marido como qualquer outro, sem esta semente da insânia que súbito cresce e se torna insuportável.

 

Ligadão

Faz três noites que não consigo dormir. A insônia é como uma fome, uma fome de vida. Diante de tantas coisas para fazer, não consigo sossego de alma para descansar. Fico algumas horas me virando na cama, daí me levanto e me dedico à leitura, a escrever, a responder e-mails. Faço de tudo para tentar pegar no sono — como, bebo chá, leio coisas amenas. Nada, no entanto, me sacia. Passo o dia todo com o corpo doído, trabalhando em mil coisas, sem sentir sono.

Já tomei bebidas à noite, para desmaiar. Mas o álcool, depois de umas duas horas, perde o efeito letárgico e me volta, feroz, a insônia.

 

Com o filho no colo

Sábado é sempre dia das tarefas familiares. Foi assim ontem. Depois do almoço, tentei escrever minha crônica. Impossível. Os jardineiros trabalhavam no quintal e me sinto constrangido por não cuidar nem das plantas de casa. Juliana me trouxe o Antônio para poder ir à floricultura. E Antônio chorou enquanto eu tentava escrever com ele no colo.

Assim que dormiu, chegou minha filha querendo conversar. A crônica estava comprometida. Quando pude me dedicar ao texto, a coisa já não funcionava. Só consigo escrever num único fluxo, sem interrupção e sem a presença de ninguém. Preciso anular o mundo ao redor, apagá-lo tão completamente que só existam as palavras que digito. Qualquer presença, mesmo a voz de um vizinho, me afasta do texto. Não posso interromper a escrita também, pois daí fica difícil retomar o ritmo.

 

Remendos

As tarefas de ontem me deprimiram. Ao menor sinal de dificuldade, entro em depressão, pois não suporto o confronto com a impotência. Hoje, depois de ler por algumas horas, durante a madrugada, voltei ao tema da crônica e a concluí. Não ficou boa, mas consegui salvar a ideia. Para mim, será um texto cheio de remendos, uma peça menor. Raramente isso me acontece. Mesmo com os romances, não perco o ritmo. Perder o ritmo é perder tudo, pois quando escrevo é o ritmo que me escreve. Intuição, associações livres de ideias, acasos e acidentes determinam minha literatura. Sinto que sou menor do que aquilo que escrevo.

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Miguel Sanches Neto nasceu em Bela Vista do Paraíso, no interior do Paraná. É autor de seis romances, além de livros infanto-juvenis, contos e ensaios. Seu romance A Segunda Pátria foi publicado em 2015 pela Intrínseca.

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