A biografia: da concepção ao nascimento

Por Clóvis Bulcão

8 / junho / 2015

Cosme Velho

A casa do Cosme Velho

Logo após me formar em história na PUC, fui trabalhar em um projeto patrocinado pela Xerox do Brasil. O então presidente da empresa, Sergio Gregóri, pretendia adquirir a propriedade de Marcos Carneiro de Mendonça, um enorme casarão no bairro do Cosme Velho, Zona Sul do Rio de Janeiro. O objetivo era transformar o local em um centro cultural. A casa era um verdadeiro museu, com muitos objetos de grande valor artístico e histórico, e abrigava uma biblioteca espetacular.

Marcos Carneiro de Mendonça gostava de dizer que era um “heurista”, ou seja, um estudioso de fontes históricas. Mas eu o via, muito mais, como o mítico goleiro da seleção brasileira dos anos 1910. Ao longo de alguns anos, tive a chance de escutar muitos relatos sobre o futebol brasileiro. Marcos jogou pelo América-RJ e pelo Fluminense. Foi em uma conversa sobre os bastidores da organização do campeonato Sul-Americano de 1919 que o nome da família Guinle surgiu pela primeira vez. O Brasil, no início do século, era um saco de pancadas do futebol regional. Após o fiasco do torneio de 1917, realizado no Uruguai, foi feito um esforço para que o próximo Sul-Americano acontecesse em nosso país.

Quando ficou decidido que o Brasil sediaria o campeonato do ano seguinte (seria em 1918, mas a pandemia de gripe espanhola adiou o projeto) começou uma nova batalha: em que cidade? A briga ficou entre Rio e São Paulo. Segundo os relatos de Marcos, ele e Arnaldo Guinle teriam tido um papel de destaque para que o Fluminense recebesse o evento.

Até que um belo dia, a conversa sobre os Guinle tomou uma direção surpreendente. Com uma pontada de ironia, Marcos Carneiro contou que Cândido Gaffrée, seu sócio Eduardo P. Guinle e sua esposa Guilhermina protagonizavam um ménage à trois. Essa informação só insuflou a minha tese de que os Guinle mereciam um livro. Talvez um romance, uma espécie de O Tempo e o Vento carioca. Várias gerações, traições, ascensão e queda.

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Estádio do Fluminense em 1919 (Flu-Memória)

Durante muitos anos essa ideia ficou hibernando em algum canto da minha cabeça. Em meados de 2010, comprei um livro (Entre os salões e o laboratório: Guilherme Guinle, a saúde e a ciência no Rio de Janeiro –  1920-1940) de Gisele Sanglard. Na sequência, comprei a biografia de Guilherme Guinle, uma publicação de 1982. Aos poucos, a velha vontade foi sendo retomada.

Por coincidência, na mesma época, a Intrínseca me chamou para conversar. Eles estavam prospectando histórias nacionais com bom potencial. Assim que falei em um romance sobre os Guinle, o publisher Jorge Oakim disse: não um romance, mas uma biografia. Faro fino de editor! Um romance não seria capaz de contar uma história tão absurdamente surpreendente. Ao longo de três gerações, a família Guinle viveu as mais insólitas situações. Saíram pobres da França e foram para o Uruguai. No país vizinho, escaparam de uma sangrenta guerra civil. Se estabeleceram em Porto Alegre, se afirmaram no Rio de Janeiro e fizeram fortuna no porto de Santos. Além do insólito padrão de vida de Guilhermina e seu marido, os Guinle tiveram uma trajetória empresarial e social ímpar.

Os Guinle foram muito mais do que uma família bilionária. Eles já foram muitas vezes comparados aos Rockefeller, mas nunca tiveram pretensões políticas. Diferentes dos Rothschild, além de contribuírem com instituições culturais em diversas cidades brasileiras, foram mecenas de artistas populares. Na vizinha Argentina, o reinado da família Fortabat é insignificante se comparado aos nossos biografados. Talvez não exista no mundo uma família que tenha feito tanto por uma nação quanto eles.

link-externoConheça Os Guinle: A história de uma dinastia

Clóvis Bulcão é historiador formado pela PUC-Rio. Nascido em Botafogo, divide seu tempo entre o magistério e a literatura. Professor do tradicional Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro, é autor de Os Guinle, além de um romance histórico e quatro livros de não ficção, incluindo Padre Antônio Vieira: um esboço biográfico (2008).
Clóvis escreve às segundas.

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