Artigos

A arte de ser Amanda Palmer

5 / junho / 2015

Por Letícia Novaes*

photo-1024x768

Uma vitrine sem preços para mim é quase uma cena de terror. Uma saia me seduz, me vejo nela, cogito entrar e sondar o preço, mas não consigo. Não consigo pedir uma simples informação: o preço. Tudo parece propício e lógico, mas sou incapaz. Sendo cara, agradeceria e iria embora. Sendo barata, poderia até adquirir serotonina consumista naquela tarde. Mas não consigo.

Tenho uma banda chamada Letuce, e outro projeto musical, só que mais teatral, chamado Tru & Tro com sua Corja. Sempre fui representante de grupo, sempre liderei movimentos (os bestas e alguns importantes), organizo agendas, ensaios, faço escalas alucinantes para que cinco pessoas consigam se encontrar no mesmo momento e lugar. Jurava que essa minha característica designava força e poder, mas ao acabar de ler A arte de pedir, da inclassificável Amanda Palmer (cantora? escritora? feminista? compositora? artista? performer? MARAVILHOSA?), me flagrei extremamente frágil e anos-luz de suas audácias impensáveis, porém possíveis.

link-externoLeia também: Entrevista com Amanda Palmer 

Quantas vezes deixei de tocar no Nordeste por conta do preço da passagem mais a hospedagem mais a alimentação? Nunca me pareceu real poder pedir aos fãs por isso tudo, só pelo ingresso. Amanda Palmer foi além. Ao organizar uma turnê, usava suas mídias para perguntar aos fãs onde ela poderia dormir após cada show. Não só ela. Ela e a banda. Foram pegos em mil aeroportos por fãs, dormiram em centenas de quartos, sofás. Tomaram vários cafés da manhã com fãs, em suas casas. E, não estando em um hotel, seria impossível deitar e dormir — há uma cerimônia, uma conversa, e isso alimenta a moça. Alguns torcem o nariz e julgam como mendicância, mas Amanda diz: “Mendigar é uma função de medo e desespero. Quem mendiga exige nossa ajuda; quem pede tem fé na nossa capacidade de amar e no nosso desejo de compartilhar.”

CAPA_AArteDePedir_WEBDevorei o livro em dois dias e a cada página repetia internamente: “Que mulher corajosa!” Mas a trajetória da coragem não se deu tão facilmente. Amanda passou anos com a voz dos demoniozinhos soprando no seu ouvido: “Você é uma fraude.” Fez faculdade de arte, trabalhou numa sorveteria, foi stripper e um dia virou estátua viva, vestida de noiva, com a cara pintada de branco. Imóvel fisicamente, ela já elaborava as caraminholas artísticas na sua cabeça fértil, enquanto pedestres passavam e deixavam desde um dólar até o grito opressor de “Vai trabalhar!”.

Depois de algum tempo, Amanda sentiu necessidade de movimento, de se mostrar mais, e criou a banda The Dresden Dolls, com o baterista Brian Viglione. A banda logo caiu na graça dos desajustados, dos que bocejam diante do óbvio. E, sendo Amanda essa mulher devastadora, ela nunca se colocou no perigoso pedestal em que alguns artistas adoram ficar. Não ela. Amanda pula na plateia. Manja MOSH? Nada mais revelador do que isso. E essa parte não tem a ver com coragem. Tem a ver com confiança. Amanda confia.

E foi com essa confiança de quem se lança no ar que Amanda começou a pedir ajuda aos fãs. E muitas vezes sem nem pedir, apenas pela sua troca constante. Certa vez, ela recebeu dez dólares de um rapaz, que disse: “Sei que você odeia sua gravadora, então quero que esse dinheiro nem passe por ela. Toma, pra você.” E aos poucos ela foi se livrando de padrões que já não condiziam com sua verdade, como o agente da gravadora que comentou que ela estava passando muito tempo no Twitter e trabalhando pouco. Isso é trabalho, Amanda pensou, e depois esfregou elegantemente na cara desses seres retrógrados que ainda não despertaram para as novas formas de mídia.

Meu lado voyeur vibrou ao ler também sobre sua relação com os dois homens da sua vida. Anthony, o melhor amigo terapeuta, com conselhos iluminados, e Neil Gaiman, o marido, escritor renomado, o encontro estabanado que tiveram, a lenta aceitação da chegada do amor. Amanda conta como sofreu ao ter que pedir dinheiro ao marido. Os fãs eram outra categoria, eram vários “mecenas”. Estabelecia-se a troca e tudo bem. Pedir ao marido esbarrava em debates feministas, em que ela sempre embarcou e defendeu com unhas e dentes, para não dizer pentelhos e topless.

Em 2012, Amanda Palmer conseguiu arrecadar mais de um milhão de dólares com o crowdfunding do seu novo disco. Foi a maior arrecadação da história do financiamento coletivo para um projeto musical. Ela só pediu por cem mil, mas todos os anos de turnê e de troca real e intensa com os fãs mostraram que o que ela pedisse eles dariam.

Acabei o livro quase triste. Queria saber mais sobre aquela vida tão fora da curva. Revi a palestra dela no TED, ouvi músicas, fucei fotos e me inspirei para o meu próprio crowdfunding. Amanda inspira. É espontânea, tangível, legítima.

ShervinLainez_AFP-GTO_we are the media_2

Pedir uma informação, pedir um favor ou ajuda, nada disso pode ser encarado com tanta sisudez. Quem pede também está se esforçando, já que é quase impossível se expor — de verdade — hoje em dia. Estamos todos contando moedas em casa e postando fotos com drinks caros nas mãos. Sou rainha em dizer “Deixa comigo” e chorar no banho pensando em como vou conseguir.

Nunca esqueci do primeiro post no Facebook de pedido de emprego que vi. Era uma atriz de teatro de São Paulo. Fez um post eloquente, disse que poderia fazer outras atividades, já que não era herdeira e precisava comer e pagar contas. Em nenhum momento achei uma exposição negativa. Não lembro o desenvolvimento da história. A gente compartilhou chocada, já que ela era supertalentosa, mas foi a primeira vez que vibrei de verdade com o Facebook. Não é possível aquilo só servir para bobagens.

“Você precisa passar uma imagem estável. Se você expõe que o bicho tá pegando, ninguém vai te chamar pra nada”, já ouvi de muitos (próximos até!). Acho que sempre fui devota de Amanda Palmer sem nem saber, pois nunca caí na tolice da imagem. Minha amiga fotógrafa até briga comigo pois não quero Photoshop em nenhuma foto de divulgação. Minhas veias, minhas rugas, minha depilação atrasadinha. A verdade ama algumas pessoas e Amanda Palmer foi escolhida. Eu e alguns também. É com verdade, coração. Só com ela. De outra forma, a mágica não acontece.

Amanda Palmer faz uma releitura  maravilhosa da música “I want you but I don’t need you”. Amanda quer fãs, mas não precisa deles. Querer é algo poderoso, envolve desejo, vontade. Precisar esbarra na necessidade e também na carência. Amanda Palmer nos quer, nos deseja, e eu e tantos outros (tomara que muitos) sentimos o frisson delicioso que ela causa, seja cantando, escrevendo, sendo estátua ou apenas sendo gloriosa. E a próxima vez que eu tiver curiosidade sobre o preço de uma roupa vou entrar e pedir essa informação, sem medo. Amanda Palmer me ensinou tal coisa. Dizem que é arte. Questiono se pedir é realmente uma ARTE. Tudo é a maneira. Amanda ensina como. E a gente arregala os olhos e bate palmas para a sanidade.

link-externoLeia um trecho de A arte de pedir

 

Letícia Novaes atua, canta e escreve. É vocalista e compositora da banda Letuce e colunista mensal do Segundo Caderno, do jornal O Globo. Letícia está em finalização do crowdfunding do seu primeiro livro Zaralha — abri minha pasta.

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *