[VOLTA ÀS ILHAS] PARTE II

Por Pedro Gabriel

12 / maio / 2015

[A PAIXÃO É UM MONSTRO QUE SE FAZ DÓCIL]

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Em Cabo Verde, mais do que o amor, é o mar que nos recebe de ondas abertas. Rochedos escorregadios completam o cenário da recepção. É assustador, tudo pode despencar de uma hora para outra. Tudo pode romper a qualquer momento. A gente pode se deixar levar sem perceber, sem se dar conta. É um pouco como as paixões repentinas. Se criam sozinhas em ribanceiras, na beira de precipícios fora ou dentro de nós. Não olhamos para elas e, quando nos deparamos, já viraram monstros mansos, silenciosos. Descansam à beira das águas, fazem a política da boa vizinhança com as nossas mágoas. Mas, no fundo, querem te afundar. Silêncio. A paixão é um monstro que se faz dócil.

Fomos visitar um barco abandonado. Gentileza é chamar aquele casco enferrujado de barco. O caminho mais difícil que eu já deixei pegadas. Meus pés são testemunhas cansadas, mas vivas. Uma trilhazinha onde só cabras (e magras) conseguem avançar com desenvoltura. Humanos sentem tontura. Humanos sentem incômodo. Humanos sentem muito, muito medo. As cabras não sabem o que é morrer. Por isso serão sempre cabras. Meu pai se esqueceu que era humano e imitou as cabras. Por pouco, não ficou por ali para sempre. Por sorte, sua experiência nas montanhas suíças desde menino foi um cursinho de sobrevivência em situações onde só você pode se salvar. Ali não adianta clamar por Deus. Você é a sua sobrevivência. As mãos de Ivanildo, o taxista que nos acompanhou no passeio, foram o puxão do descanso, o alívio depois de renascer das pedras, da poeira, da queda. Naquele dia, Ivanildo foi um pouco Deus.

Quando encosto os pés na beira da encosta, o frio se apossa do meu estômago. É uma sensação estranha, um amor ao reverso: as borboletas fogem. Sei lá, viram borboletas-marinhas e se enfiam na grandeza do horizonte. E, antes que eu possa reagir, Pedrinho me dá as mãos, e as mãos me dão coragem, e a coragem me afasta do litoral. Pronto, o susto passou. O navio naufragado parece uma peça de um museu. Enferrujado, em decomposição. Quem mora em uma ilha deve se acostumar com as despedidas. Quem mora numa ilha deve saber que o infinito está para todos os lados. Qualquer direção aponta para muito longe.

Estamos de volta à tranquilidade.

Nosso porto seguro é a casa da família da Tété Alhinho, uma das vozes do grupo Simentera – que lançou o álbum Raiz, considerado o melhor álbum da música cabo-verdiana de todos os tempos. Comparando, seria o White Album das Ilhas. Pela importância, não pela sonoridade. Ambos os álbuns, o de Liverpool ou o da Ilha de Santiago, são geniais. No meu mp3 player, Ildo Lobo canta nha corpo é di tchom, nha´alma é di deus, (“meu corpo é do chão, minha alma é de deus”,em crioulo). A música é um testamento. Seu testamento, talvez. O saudoso Ildo Lobo talvez seja a voz masculina mais conhecida de Cabo Verde. Não esqueço de Bana, claro, mas Ildo tem a vantagem de ter sido o ídolo do meu pai, e seu grande amigo também. Quem é amigo do meu pai já sai ganhando. Sim, existem panelinhas até dentro das relações familiares. Nunca disse que a vida não é cruel.

Nas noites frias, as mornas* de Cesaria Evora me aquecem. Eterna Cesaria. Cantava descalça para sentir o chão chorar. Silêncio. O amor pode brotar a qualquer momento.

*A morna é um dos ritmos mais famosos da música cabo-verdiana. É levemente melancólico e imensamente esperançoso.

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Leia também: [Volta às ilhas – Parte I]

Pedro Gabriel nasceu em N’Djamena, capital do Chade, em 1984. Filho de pai suíço e mãe brasileira, chegou ao Brasil aos 12 anos — e até os 13 não formulava uma frase completa em português. A partir da dificuldade na adaptação à língua portuguesa, que lhe exigiu muita observação tanto dos sons quanto da grafia das palavras, Pedro desenvolveu talento e sensibilidade raros para brincar com as letras. É formado em publicidade e propaganda pela ESPM-RJ e autor de Eu me chamo Antônio Segundo – Eu me chamo Antônio e Ilustre Poesia.

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Comentários

5 Respostas para “[VOLTA ÀS ILHAS] PARTE II

  1. Mais uma vez eu me deliciando com sua maneira de escrever. Alem de dividir o gosto por Cesaria Evora… vou procurar conhecer os outros que você menciona pprque é um tipo demmúsica

  2. É uma coisa gostosinha de ler, moço. não faz ideia dos amores em que me encontro! <3

  3. Gostoso de ler…flui!

  4. E sempre um prazer ler os seus textos.Cada texto seu é uma viagem a um imaginário de coisas belas e agradáveis. Obrigada

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