Peixe vivo e o contrário

Por Clarice Freire

1 / abril / 2015

02.04 - peixeclarice

Uma vez eu li em algum livro sobre publicidade que “só quem nada a favor da corrente é peixe morto”. Passei algumas horas conversando com essa frase.

Por causa desse negócio de conversar com frases, por sinal, uma amiga me chamou carinhosamente de “vaca das palavras”.  Antes que eu me ofendesse, explicou que, me observando de perto, percebia uma característica de vaca em mim quando eu escutava alguma palavra que me alimentasse: ruminava-as até degustá-las e extrair o máximo possível dos seus significados. Às vezes por dias e dias. Não pude deixar de rir muito da comparação nada poética, mas tive que reconhecer que era completamente verdadeira.

Não consigo ser indiferente às palavras que derrubam muros e me emudecem, porque descem direto para o meio do peito, por conta das suas verdades. Simplesmente preciso mastigá-las. E como todo alimento, elas passam a circular pelo meu sangue, a nutrir meus órgãos, a ser algo em mim.

Por isso tento escolher sempre as melhores palavras para ruminar. As mais nutritivas. A esta altura, já entendi que palavras vencidas causam um mal muito mais permanente e ofensivo do que qualquer comida estragada. E acredito que temos uma tendência estranha de ruminar conjuntos de vocábulos podres por muito tempo, mesmo com o gosto ruim voltando irritantemente para a boca. Vai entender.

Mas voltando para a minha conversa com a frase do publicitário, encontrei nela algumas explicações para esta minha maneira esquisita de me entediar com tudo que é igual e lugar-comum. Pensei naquele pobre peixe e no esforço terrível que precisaria fazer para nadar contra uma corrente muito mais forte que as suas barbatanas cansadas, e criei por esse nadador uma simpatia instantânea, daquelas que vêm pela identificação profunda.

Talvez não pela tendência de querer nadar contra a tal corrente, mas pela atração quase desesperada por estar viva. Muito viva. Viver intensamente custe o que custar.  E peixe vivo, muito vivo, vai nadar teimoso, cansado, enquanto ainda souber como. Por quê? Porque está vivo. Só isso.  O que mais ele poderia fazer?

Hoje é a quinta-feira do lava-pés, para os cristãos. A cena já vem contra a correnteza: um homem resplandecente resolve colocar uma roupa de escravo e repetir o gesto que nem os próprios serventes poderiam ser obrigados a fazer: lavar os pés dos outros. Sem dizer nenhuma palavra, um homem grande mostra que, para ser mestre, é preciso servir, sair de si e, “fazendo isso, sereis felizes”. Não é preciso crença em nada para perceber a beleza de um gesto.  Somos formados para sermos os melhores, mas a maestria de colocar sua própria vontade à disposição de outro é reservada a poucos e bravos peixes. O mundo precisa de uma multiplicação deles urgentemente.

Adoro contrários. Adoro criaturas contrárias. Adoro quem é contrário até mesmo ao próprio contrário, não porque quer, não porque quer mostrar nada a ninguém, mas porque está vivo. E não quero me render à corrente da indiferença nem tão cedo, nem tão tarde.

Estamos vivos, estamos flutuando no espaço!

Estamos passando por um mundo sedento, por pessoas vazias,

Por caminhos estranhos;

por estradas de flores;

pelo barulho gritante;

pelo silêncio do fundo do mar;

pelo mistério do seu olho hoje. O que ele quer dizer?

São tantas correntes, tantas vielas, becos e bifurcações de correntes. Meu lugar é desperta, se você dorme. Calada, se você fala. Séria, para enxergar todos os detalhes do seu sorriso, sorrindo da sua seriedade e respirando gulosa o meu oxigênio amado, ruminando palavras doces.

Fugindo de tudo que é tedioso.

Provando do amor,

rindo do nada,

nadando teimosa.

 

Clarice Freire nasceu no Recife, em 1988, e desde muito cedo aprendeu a usar as palavras para acalmar suas inquietações. Cresceu admirando os desenhos em lápis de cor da mãe, Lúcia, e os versos do pai, Wilson. Uma noite, ouviu falar que a lua era bela porque, mesmo sendo só areia, deixava refletir a luz de outro, e por isso as noites não são escuras. Daí veio a inspiração para o nome de sua página no Facebook, Pó de Lua, criada em 2011.
Clarice escreve, quinzenalmente, às quintas.

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Comentários

4 Respostas para “Peixe vivo e o contrário

  1. Acho incrível a forma como você coloca as palavras aqui. Você, literalmente, mastiga uma por uma e as deixa com um tom de naturalidade incomparável. Encontrei muito de mim nesta coluna. Espero que você nunca pare! <3

  2. “Adoro contrários. Adoro criaturas contrárias. Adoro quem é contrário até mesmo ao próprio contrário, não porque quer, não porque quer mostrar nada a ninguém, mas porque está vivo. E não quero me render à corrente da indiferença nem tão cedo, nem tão tarde.”
    Em um belo texto todas as palavras merecem sem ruminadas com um cuidado todo especial! Parabéns Clarice, seus textos são todos maravilhosos. 🙂

  3. Suas palavras tocam a alma, de uma forma que não dá pra descrever. A verdade com que você escreve, é puro, é lindo, é verdadeiro, é de alma.

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