TREMELUZENTE

Por Clarice Freire

12 / março / 2015

12.03 - coluna

Ontem eu vi uma chama que andava tão trêmula.

Perguntei seu nome. Não lembrava nem mesmo como se chamava. A chama não chamava mais ninguém, também. Pudera, ninguém gosta de chamas trêmulas.

“Mas as chamas são trêmulas”, você vai me dizer.

Acho que não, acho que são tremeluzentes.

Tremem, mas suas luzes as deixam luzentes: muito mais que trêmulas apenas.

As chamas também têm uma chama para arder sem se consumir. Não me pergunte como, isso é um tipo de dom das chamas e quem não é chamado não pode entender. As chamas deixam os outros chamados, se é que você me entende. Quando ficam trêmulas se consomem muito rápido, é um perigo. Assim elas podem desaparecer num estalo.

Pois essa chama que conheci andava tão trêmula que não tinha mais uma chama pra ninguém ser chamado e, na memória, era difícil achar o que foi tremeluzente um dia. Estava ficando frio demais e a memória sempre precisa de sol para combater as traças. Sem saber mais pra onde ir, a chama trêmula esperou o golpe fatal de uma rajada de vento mais forte que passeasse com mais ânimo por alguma esquina e a acertasse em cheio, me disse com uma voz apagada.

Deu dó a sua cara de ré.

Passava por ali um viajante muito simples. Tinha algo que chamava no seu jeito estranho: pés de vento, coração incandescente e os olhos tinham cara de abraço quente.

Ele carregava uma caixa na mão, cheia de sussurros que havia colhido pelo caminho. Eram difíceis de achar.  Mas ele sabia como colhê-los e ensinava pelos lugares frios. Não me pergunte como, isso é um tipo de dom dos viajantes e quem não viaja não pode entender.  Seus olhos abraçaram a chama à primeira vista e, desde então, leram com generosidade seu problema. Não foi difícil sentir falta do luzente no tremer temente da chama.

Abriu sua caixa de sussurros, os escolheu com cuidado.

É preciso cuidado com os sussurros. Às vezes nos pegam desprevenidos, porque esperamos sempre que sejam suaves e, muitas vezes, são mais estridentes que uma feira do interior em um dia de domingo.

O viajante sussurrava na chama e eu não era capaz de entender aquela língua que falava. Acho que eram palavras de amor, pela cara da chama e pela música na voz do viajante. Se nota logo. Têm sempre as mesmas notas, as palavras de amor. Falam da dor como se fosse brincadeira e derretem os nossos gelos como uma lareira. Olhei a chama novamente.

Ora se apagava, ora se acendia, ora fria, ora quente.

De um jeito sussurradamente eloquente,

a chama tremeu pela última vez.

E acendeu

Outra vez,

Treme-luzente.

 

Clarice Freire nasceu no Recife, em 1988, e desde muito cedo aprendeu a usar as palavras para acalmar suas inquietações. Cresceu admirando os desenhos em lápis de cor da mãe, Lúcia, e os versos do pai, Wilson. Uma noite, ouviu falar que a lua era bela porque, mesmo sendo só areia, deixava refletir a luz de outro, e por isso as noites não são escuras. Daí veio a inspiração para o nome de sua página no Facebook, Pó de Lua, criada em 2011.
Clarice escreve, quinzenalmente, às quintas.

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Comentários

Uma resposta para “TREMELUZENTE

  1. Amo tanto sua coluna. Você escreve coisas lindíssimas <3

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