[POR QUE JOGAMOS TÊNIS NOS FIOS DE ALTA TENSÃO?]

Por Pedro Gabriel

24 / março / 2015

 

24.03 foto coluna alterada

Calma! Talvez a imagem que tenha se formado na sua cabeça ao ler o título seja a de mais uma disputa histórica entre Nadal e Federer em algum Grand Slam da vida. Infelizmente, eu não tenho conhecimento técnico sobre tênis, o esporte, por isso prefiro desenvolver minha ideia sobre tênis, o calçado. Com o perdão do trocadilho, eu fico em choque quando vejo sapatos pendurados nos cabos elétricos que iluminam os nossos caminhos. O que leva um ser humano provido da capacidade de raciocínio, diante de tantas opções, escolher logo a que parece mais ilógica?

Minha curiosidade sobre esse tema sempre foi grande, mas não a ponto de buscar em livros ou palestras motivacionais respostas plausíveis. Muitos menos mergulhei em teses psicanalíticas que, a meu ver, concluiriam mais ou menos assim: esse fenômeno social está enraizado em nós desde a nossa primeira infância. Nele, o fenômeno, podemos observar claramente a ausência da figura paterna. É um reflexo da própria vida. O cidadão, querendo se ausentar de si mesmo na busca pela presença do pai, se projeta nesse objeto masculino concebido para andar e correr atrás. No fundo, ele decreta sua inércia, sua incapacidade de vivenciar a própria realidade. Vamos deixar Freud e companhia de lado. Fui preguiçoso, confesso. Entrei no Google, li dois ou três blogs, algumas matérias isoladas e, principalmente, caminhei para dentro do meu ser em busca de palavras que pudessem exteriorizar a resposta à pergunta do título desta coluna.

Quem nunca roubou o tênis do coleguinha na hora do recreio que atire a primeira palmilha. Ali, escondidos da censura da idade adulta, estávamos formando futuros jogadores-de-tênis-de-rua. Atletas profissionais, que entrariam facilmente no Top 10 da ATP se tivessem recebido um olhar atento dos nossos educadores desde cedo. É um absurdo a falta de investimento dos nossos governantes com essas jovens promessas! Quem sabe não teríamos uma nova modalidade olímpica para 2016?!

Em muitos bairros do Rio, esse fenômeno tem um lado marginal. Muitas vezes serve para marcar território de gangues rivais ou anunciar algum ponto de venda de substâncias ilegais. Em outras cidades, o fato de amarrar (e não jogar) o sapato de alguém em algum poste de luz tem um valor simbólico. Serve para celebrar alguma conquista importante para o (ex-)dono daqueles sapatos. Às vezes, vale se deparar com a realidade de perder um velho sapato para ganhar um novo fôlego na caminhada dos sonhos.

Eu vejo um lado mais melancólico, o que não deixa de ser bonito. Será que eles se lembram dos seus antigos donos? Será que choram sozinhos ao recordar da simpatia do dedão do pé direito ou da ousadia do pé esquerdo ao chutar uma lata de refrigerante amassada na calçada? Quantas histórias ficaram penduradas nesses cadarços? Eles parecem pássaros aposentados, que esperam para sempre o desejo de poder voar novamente. Se os pombos tivessem pés, já estariam equipados para qualquer maratona de alto nível. Penso logo numa propaganda de um novo tênis de corrida com a etiqueta “made in light” e o slogan-clichê: corra na velocidade da luz! Usain Bolt não curtiu isso.

Imagino a solidão de um tamanho 42 ao se distrair com uma sandália abandonada tamanho 37. Formaríamos um lindo par, pensou ele. A distância é sempre cruel, disse ela. Penso também em um filho perguntando para mãe ao olhar para o fio calçado: poste tem chulé? Às vezes, tenho quase certeza que esses tênis são simplesmente equilibristas invisíveis que trafegam pelo mundo em busca de visibilidade.

Enfim, tudo isso para dizer que a minha conta da Light poderia muito bem se inspirar nessa história, pegar carona em alguns desses tênis abandonados e sumir na velocidade da luz. Antes que ela apareça pendurada no próximo poste da minha rua.

Pedro Gabriel nasceu em N’Djamena, capital do Chade, em 1984. Filho de pai suíço e mãe brasileira, chegou ao Brasil aos 12 anos — e até os 13 não formulava uma frase completa em português. A partir da dificuldade na adaptação à língua portuguesa, que lhe exigiu muita observação tanto dos sons quanto da grafia das palavras, Pedro desenvolveu talento e sensibilidade raros para brincar com as letras. É formado em publicidade e propaganda pela ESPM-RJ e autor de Eu me chamo Antônio Segundo – Eu me chamo Antônio e Ilustre Poesia.

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Comentários

4 Respostas para “[POR QUE JOGAMOS TÊNIS NOS FIOS DE ALTA TENSÃO?]

  1. Como sempre, um texto fantástico, e de uma sensibilidade singular <3

  2. De novo me apaixonei pela leitura, na verdade sempre fui apaixonado por leituras que conseguiam me “tirar da terra”, que faziam ser dela, que me faziam carrega-la para onde eu fosse. A leitura esta dentro de nós e quando leio algo que alguém em sua leitura da vida expressa em forma que arruma meus pensamento, e fazem meus olhos se transbordarem, que fazem viajem em minhas memorias, ai sem duvida estou completamente apaixonada, como em cada fim de um romance, uma leitura sempre acaba, mas sempre deixam saudades suspiros ao lembrar da caminhada

  3. Adoro a sua sinceridade. “Fui preguiçoso, confesso. Entrei no Google, e li dois ou três blogs, …”
    Poetizar sobre os tênis pendurados nos fios, só você mesmo Pedro. São coisas que a gente nem repara mais. Poesia é realmente observar o mundo.

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