[O ÚLTIMO HABITANTE]

Por Pedro Gabriel

15 / março / 2015

10.03- pedro gabriel

Encontrei um novo lugar para passear com as minhas ideias, para papear com meus silêncios. Um lugar não muito longe de casa. Gosto de lugares assim: distantes do meu quarto, pertinhos de mim. Na exata distância entre a vontade de fugir para sempre e o desejo de nunca abandonar o meu lar. Se por ventura enjoar dessa aventura, volto para o meu refúgio. Se por acaso me encantar por lá, fico por ali horas e dias e meses e anos e séculos. Confesso: é um pouco covarde fugir para perto de si, para perto de um lugar seguro. Mas seria bem pior fugir de outra maneira. A pior fuga é para dentro da gente. A gente esconde até da gente que está indo embora…

Meus domingos têm sido assim. Antes das dez, já ocupo meu lugar no banco mais bonito do jardim do Museu da República. São todos iguais, mas ele é mais bonito. Ele é verde-militar, como os outros (continências!). Ele tem o mesmo comprimento que seus vizinhos estáticos. Mas ele tem cara de ser o morador mais bacana do prédio. Ele também descasca, talvez até mais que os demais. Sua madeira deve ter mais cupins do que a democracia tem inimigos. Mas ali encontrei meu conforto. É bom saber que existe um canto de paz ao lado de tantos conflitos. Seus parafusos já estão enferrujados, sinto que ele pode quebrar a qualquer momento. Belíssima tradução da vida. Se existisse uma exposição onde se pudesse entrar sem indicação, colocaria esse mesmo banco no final de um imenso corredor de sei lá quantos quilômetros, com o título: A DUREZA DA FRAGILIDADE DA VIDA. Todo mundo que conseguisse chegar até o último centímetro desse caminho sentaria neste banco apodrecido, mesmo sabendo que ele poderia romper a qualquer momento. Mesmo com um aviso bem grande: “FRÁGIL”. A preguiça é sempre maior que o medo. Quantas ideias não foram realizadas hoje pelo susto que dá não saber do amanhã? Quantas?

Um senhor lê seu livro para tapar a solidão. Minha miopia não conseguiu descobrir qual autor lhe fazia companhia. Pela tristeza do seu olhar, aposto que nem lia o livro. Ele lia sua vida. Na página 17, se formou em engenharia mecânica numa universidade federal. Na página 35, jurou amor eterno à sua noiva em uma igreja católica. Na página 48, salvou um menino de afogamento na praia do Leme. Na página 72, seus netos já chegam por osmose para o almoço de domingo. Na página 92, ele caminha com duas enfermeiras – a partir de uma certa idade, nossos parentes mais próximos se vestem de branco – e uma cadeira de rodas. Depois da página 100, ele só consegue entender o mundo com a ajuda de aparelhos. A vida é assim: um livro de, no máximo, 107 páginas. No posfácio seremos todos esquecidos. Os direitos autorais irão para um autor desconhecido.

Uma senhora com a voz desafinada pelo tempo e pelo cigarro (duas companhias que não costumam perdoar), entona os versos melancólicos de “Fascinação”. Ela deve ter aprendido a cantar com a versão original de 1943, do saudoso Carlos Galhardo. “Os sonhos mais lindos, sonhei”… Tenho certeza que, na sua existência, ela também ergueu um castelo, e que o seu olhar, tonto de emoção, viu amanhecer muita sofreguidão. Eu chorei. Para me alegar, gansos tentam ler o que escrevo. Os patos parecem rir enquanto conversam. Será que são felizes? A felicidade não compreendida é uma ilusão. Ele pode estar triste, triste, tristinho esse patinho! No lago, peixes vermelhos e carpas fazem mais sucesso do que em qualquer cardápio nipônico. Que fome!

Sei que aqui, onde hoje é o museu, as principais decisões políticas do país foram tomadas na década de cinquenta. Sei que muitas leis andaram nesses corredores; sei que muitos interesses se enfiaram nessas salas; sei que muitas pressões se apoiaram nessas mesas; sei que muitos escândalos dormiram nesses quartos; sei que hoje tudo isso é museu. Infelizmente, sei também que tudo isso continua a habitar outros palácios.

De que adianta se deslocar para tão longe sem querer mudar o que está tão perto? Às vezes, buscamos a liberdade em lugares cada vez mais distantes. Às vezes, esquecemos que nós mesmos temos fronteiras imensuráveis. Que não precisamos de visto para nos enxergarmos melhor. Que não precisamos passar pela alfândega para entrar dentro do nosso próprio território. Tem gente que insiste em pedir impeachment dos próprios sonhos, mas esquece que sonhar ainda é a mais bela democracia.

No andar de cima, a mancha de sangue no pijama listrado se nega em admitir o suicídio do seu último habitante.

Pedro Gabriel nasceu em N’Djamena, capital do Chade, em 1984. Filho de pai suíço e mãe brasileira, chegou ao Brasil aos 12 anos — e até os 13 não formulava uma frase completa em português. A partir da dificuldade na adaptação à língua portuguesa, que lhe exigiu muita observação tanto dos sons quanto da grafia das palavras, Pedro desenvolveu talento e sensibilidade raros para brincar com as letras. É formado em publicidade e propaganda pela ESPM-RJ e autor de Eu me chamo Antônio Segundo – Eu me chamo Antônio e Ilustre Poesia.

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Comentários

5 Respostas para “[O ÚLTIMO HABITANTE]

  1. Não cabe em mim o amor que tenho pelo que escreves, Antônio.
    “A pior fuga é para dentro da gente” a melhor fuga é ler teus texto! <3

  2. Mais um texto falando sobre banco. Penso que um banco é um convite para a gente parar um pouquinho a nossa vida, mesmo que o tempo não pare. Há tanta vida lá fora, mas há também muita vida dentro dos nossos pensamentos. Muitas vezes já pensei em pedir refúgio a um banco, num jardim bem bonito, igual cena de filme. Já imaginou quantos filmes passarão em nossas mentes? Muitas de nossas ações pedem um banco: ler, escrever, pensar, refletir, observar, namorar… Pedro Gabriel, mais uma vez você arrasou. Muitos bancos na sua vida de poeta. Ah, só queria saber se você lê os comentários aqui postados.

  3. ‘Bom saber que existe um canto de paz (o seu canto!) ao lado de tantos conflitos’. Belo texto, profunda reflexão!

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