CineCotidiano

Por Clarice Freire

5 / março / 2015

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Passo uns tempos da minha vida rodando por aí. Viajando. Rodar demais é cansativo, uma hora tudo o que quero é voltar para casa. Mas, um dia, estar em casa também é cansativo e preciso voltar a rodar as estradas ou nuvens por aí. Por isso digo rodar. É quase um círculo vicioso.

Passei um tempo da minha vida dando essas voltas por Buenos Aires. Cidade colorida. Obviamente, os parques eram meus lugares favoritos, e lá eles são tantos… Uma tarde resolvi me demorar em um banco, no Jardim Botânico, tudo na esperança de conseguir escrever com um pouco mais de dignidade do que habitualmente faço. Isso quer dizer fora de casa, do escuro, brigando com o sono porque as ideias só me visitam quando quero espantá-las pra dormir. E isso me custa algumas noites preciosas.

Mas paremos de imaginar a minha cara amassada e voltemos para o Jardim Botânico.

Sentados em um desses bancos de praça, só os dois, se aninhava preguiçoso um casal de meia-idade. O que me chamou mesmo a atenção era que o banco não estava virado para a beleza do parque, para onde eu havia fugido. Ele ficava perto da grade, e esta se entregava para a avenida movimentada. O casal estava virado para ela e seus carros.

E os dois ali sentados em silêncio, meio abraçados, olhando apenas a rua.

Comecei a esperar que se cansassem, que começassem a conversar, mas não.

Eles passaram muito tempo olhando simplesmente os transeuntes, o cachorro virando latas, o saco plástico dançando na calçada.

A essa altura meu caderno já me cutucava pedindo atenção. Ignorei.

Realmente eu estava agora com o casal, meio que impressionada, meio que curiosa, achando a cena estranha. Na verdade, eles me lembravam duas pessoas assistindo à televisão. Ou no cinema, melhor dizendo, pelo tamanho da tela. A posição, o silêncio, o foco. Mas era só a rua, o entretenimento.

Eu mesma já estava com os fones de ouvido fazia tempo. Achava um insulto aquele barulho de ônibus mais alto que o silêncio do jardim.

Eles passaram ainda o que me pareceu horas ali parados diante daquele telão em tempo real. Estrelando: o cotidiano.

O casal já tinha lá seus cabelos brancos. Acho que entendiam bem de cotidiano. O que fazia então que eles parassem para contemplá-lo? Nós, que vivemos presos ao de sempre, às nossas pressas e aos nossos barulhos, paramos para contemplar um jardim bonito, uma beleza qualquer, uma tela de TV que nos leve pra longe. Mas parar para admirar durante horas o nosso corriqueiro, o de sempre, como se fosse algo extraordinário que merecesse atenção?

Pensei então que eles talvez não se importassem com o que estava acontecendo na rua. O que valia era estarem ali sentados, ela ao lado dele e ele ao lado dela. Me perguntei de novo se isso também não deveria ser corriqueiro. Um casal de cabelos brancos já teve lá seus anos e anos para sentar lado a lado e estar ali como quem degusta aquele instante com prazer.

De repente, ele puxa algum assunto. Ela responde algo, mas sem desviar muito os olhos da rua, como quem não quer perder um detalhe do filme. Ele ri. Ela ri. Eles conversam. Os dois voltam os olhos para a rua.

E eu rio também.

Era a rotina admirando o corriqueiro, que ria do de sempre e também do trivial. Todos ali, sentados, parecendo um triângulo amoroso: o banco, o casal, a rua. Apaixonados entre si e despreocupados em preencher as horas com uma discussão acalorada.

São umas criaturas difíceis de se ver em público, aqueles dois grisalhos num banco de praça. Até porque estes tipos preferem ficar nas sombras das árvores, nos cafés das esquinas,
não se importam com os esquecimentos.
Nem são engolidas pelo cimento.
As sutilezas passam despercebidas.

Me vi admirando a capacidade daquele triângulo de parar para sentir aquela pele de sempre, a piada de todos os dias, a buzina de ontem.

Simplesmente porque a vida está ali, se apaixonando de novo por si mesma,
e só isso interessa.
Os amores se escondem
de quem passa com pressa.

 

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Clarice Freire nasceu no Recife, em 1988, e desde muito cedo aprendeu a usar as palavras para acalmar suas inquietações. Cresceu admirando os desenhos em lápis de cor da mãe, Lúcia, e os versos do pai, Wilson. Uma noite, ouviu falar que a lua era bela porque, mesmo sendo só areia, deixava refletir a luz de outro, e por isso as noites não são escuras. Daí veio a inspiração para o nome de sua página no Facebook, Pó de Lua, criada em 2011.
Clarice escreve, quinzenalmente, às quintas.

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Comentários

2 Respostas para “CineCotidiano

  1. A verdade é que essa contemporaneidade nos tira a beleza do que realmente é belo. O sempre. O Cotidiano.

  2. Inclusive, glorias por ser tão bem notado pela locutora.

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