Biografia de um livro: O romance se sedimenta

Por Miguel Sanches Neto

30 / março / 2015

Entre tensões e distensões no ato da escrita, o romancista vai dando um rosto provisório ao livro.

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30 de março de 2013 – sábado
O romance segue me comandando. Não posso recuar diante de nenhuma cena. Devo ser digno de cada uma delas e torcer para que formem um todo. A rapidez e a escrita irrefletida possibilitam uma unidade para as partes. O espaçamento de tempo nos afasta da sintonia subterrânea que amarra o livro.

Não tenho feito quase nada além de escrever. Se tivesse mantido minha coluna de crítica eu teria sabotado este romance. Quando vamos envelhecendo, a literatura fica mais exigente conosco, adquirindo novos direitos.

2 de abril de 2013 – terça-feira
Fiz 1.800 palavras do romance – uma passagem difícil em que a personagem descreve uma noite de amor com uma grande figura histórica. Levei quase o dia inteiro para concluir uns poucos parágrafos. Mas já arquitetei o próxima episódio, esperando que saia mais espontaneamente.

O editor me escreveu dizendo que está gostando da primeira parte do romance, que acertei o tom da narrativa. Espero que não sejam palavras protocolares. Este pequeno elogio me deu um novo alento. É tão difícil não ter com quem dialogar. Por outro lado, é bom. Posso continuar cego no meu propósito.

Não saio quase de casa, preso ao romance.

5 de abril de 2013 – sexta-feira
O romance vai absorvendo tudo que tem algum impacto sobre minha sensibilidade, e cresce no passado (período da Segunda Guerra) e no presente, incorporando percepções. É um ser que se desdobra em duas temporalidades. Não luto contra esta tendência.

12 de abril de 2013 – sexta-feira
Estou na quarta parte, da qual já fiz 5 mil palavras. Faltam apenas 15 mil para concluir o copião. Nesta última fase, tudo deve se encaixar para que o leitor se sinta dentro de uma engrenagem narrativa em funcionamento.

Leio As agruras do verdadeiro tira, de Roberto Bolaño. No começo, há uma força ficcional imensa. Parece que estamos diante de um material humano muito denso, mas a certa altura o livro vira cenas soltas. E isso frustra o leitor. Em outros livros, o autor consegue manter melhor delimitadas as fronteiras do romance, apesar de seu estilo centrífugo. Mas aqui tudo deriva para notas marginais.

O romance que estou escrevendo busca o sentido contrário. Não desejo fazer com que o leitor se perca na narrativa. Quero levá-lo pela mão para conhecer o cenário e depois conduzi-lo até a porta de saída.

28 de abril de 2013 – domingo
Ontem e hoje não produzi nada. Embora sem acrescentar uma linha, resolvi alguns problemas narrativos. Mesmo não escrevendo, estamos sempre escrevendo o romance.

29 de abril de 2013 – segunda-feira
Três mil e duzentas palavras. Quando paramos de escrever por um tempo, sem deixar de alimentar a imaginação em torno da história, acontece um processo de transbordamento da escrita.

O copião que vai se sedimentando é apenas o esboço do romance que um dia ficará pronto. Se eu morresse agora, na primeira versão, ele estaria perdido.

link-externoLeia a coluna anterior: Uma visão Nazi do Brasil

Miguel Sanches Neto nasceu em Bela Vista do Paraíso, no interior do Paraná. É autor de seis romances, além de livros infanto-juvenis, contos e ensaios. Seu romance A Segunda Pátria foi publicado em 2015 pela Intrínseca.

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