Partidas inteiras

Por Clarice Freire

5 / fevereiro / 2015

05.02 - Coluna Clarice

Divido com você o meu lado mais banal. O ordinário dos meus dias. O que não tem valor aparente, eu parto em dois, uma parte é sua.

Assim como as minhas partidas.

E os cacos do mais clichê dos clichês: um coração partido. Eu nunca me importei com clichês, você sabe. Sou toda coração. Alguém assim não tem como dar tanta credibilidade a coisas bobas como a anatomia, que insiste em dizer que sou uma junção de outros órgãos e membros. Eu não acredito nisso. Nem você.

E te dou os cacos da minha conversa batida também. Aquela que ninguém aguenta mais ouvir.  Você sempre varreu tudo tão cuidadosamente, meio mudo eloquente, com uma serenidade invejável. Tenho tanta inveja de você e desse seu jeito simples de juntar pedaços como se isso fosse importante.

Eu nunca me dou toda essa importância.

Me dou importância demais, por isso minha dificuldade em conviver com cacos. Fico sempre mirando inteiros, totais, completos, quando eu mesma não sou nem de longe algo parecido. O que não julgo importante são os tais pedaços. Ou cacos. Você não.

E de novo você me espia.

Que lindo seu olhar de espião, me desconserta inteira. Simplesmente porque na verdade você estava me consertando e eu nem percebi. Foi a sua sutileza, eu sei. Hoje eu sei.

E eu me vejo pensando que se as banalidades já são pobres por si só, por que ainda teimo em dividi-las? Não seria para me deixar com uma sensação de ficar sem nada, já que um banal sozinho não vale nada. Quem dirá uma metade. Meio nada.
Me sinto um tanto mesquinha, limitada, pobre.

Meio nada pra mim, meio nada pra você. Que vergonha.

Mentira.

Que surpresa! A maior das mentiras, essa última que contei. Mas eu só entendi também por sua causa. Não são partes que te dou. Muito menos nadas. Mas de quinquilharia em quinquilharia, você me montou de novo, como um quebra-cabeça finalizado. Deve ser isso que se chama amor. Mais um clichê? Mentira. Isso nunca vai ser clichê. Eu tenho tanta pena de quem pensa assim.

E teria outra maneira de adentrar nesta cabeça dura se não quebrando em cacos?

Depois colando e criando uma paisagem nova. Mais verde, mais bonita mesmo. Porque nela você está lá.

Não te dei meus pedaços.

Nem minhas partidas.

Eu quis partir com você. Por inteiro.

 

Clarice Freire nasceu no Recife, em 1988, e desde muito cedo aprendeu a usar as palavras para acalmar suas inquietações. Cresceu admirando os desenhos em lápis de cor da mãe, Lúcia, e os versos do pai, Wilson. Uma noite, ouviu falar que a lua era bela porque, mesmo sendo só areia, deixava refletir a luz de outro, e por isso as noites não são escuras. Daí veio a inspiração para o nome de sua página no Facebook, Pó de Lua, criada em 2011.
Clarice escreve, quinzenalmente, às quintas.

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