[ACRÉSCIMOS]

Por Pedro Gabriel

24 / fevereiro / 2015

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Eu e meu pai nunca moramos muito tempo na mesma casa. Eu e meu pai raramente dividimos o mesmo país. Ele, na Suíça. Eu, no Brasil. Nas férias, nos encontrávamos em algum lugar do mundo. Mas as férias não passavam de trinta ou quinze dias, dependendo do período letivo. É difícil ser filho com data de validade. Não deve ser fácil ser pai com hora para acabar. Nossos dias juntos começavam com um longo abraço de saudade no saguão de desembarque e terminavam com uma lágrima presa na sala de embarque. Como se a alegria não quisesse se despedir da gente…

Eu prendia o meu choro até passar pela alfândega. Depois, quando meu pai sumia de vista, eu finalmente libertava a lágrima para que ela pudesse cumprir o seu destino: desaguar pelo caminho mais liso da minha bochecha até despencar no abismo que se inicia no fim do meu queixo. Não queria que ele visse a minha tristeza porque eu também estava feliz por ter passado quinze ou trinte dias com ele. Tenho certeza que, do outro lado da alfândega, ele também chorava feito menino. Talvez consolado por algum funcionário do aeroporto. Talvez abraçado por um outro pai recém-separado do seu filho. Nem o raio-x da polícia federal seria capaz de esclarecer essa cena. Ele não queria que eu visse a sua tristeza porque ele também estava feliz por ter passado trinta ou quinze dias comigo.

Apesar do pesar de estar longe, ele nunca foi ausente. Foram as consequências da vida que nos colocaram fisicamente a um oceano atlântico de distância. Até hoje recebo seus cartões-postais escritos à mão, com selos dos países por onde ele costuma passar mais tempo. Ontem, recebi um lindo postal da Suíça. Outro dia, o porteiro me entregou uma carta de Cabo Verde. A última correspondência que chegou tinha o carimbo dos Correios do Burundi. Guardo todos os postais em um envelope grande e pardo. Até hoje ele se recusa a abrir uma conta no Facebook. Até hoje ele se nega a ter um número atrelado ao WhatsApp. Ele ainda pertence àquela categoria de pessoas que liga para as outras. Uma espécie rara. Entrou em extinção junto com outras espécies, como: o Rinoceronte de Java, a Borboleta Monarca e aqueles seres que ainda dizem bom-dia olhando nos olhos.

Quando morávamos juntos, meu passatempo predileto era esperar ele voltar do trabalho. Sabia que sempre tinha uma surpresinha. Às vezes, um pacote de figurinhas para colar no meu álbum da Copa de 90 (será que finalmente o Walter Zenga vai aparecer para completar a página da Azzurra?). Noutras, um abraço prolongado. Para um menino é sempre emocionante ver seu pai chegar em casa. Parece que nossos pés criam asas e voam até pousar delicadamente nos braços brutos do nosso herói. O colo dos pais é o aeroporto de toda criança meio avoada.

Certo dia, ele veio com uma fita VHS (para quem nunca ouviu falar: Google!) com a gravação de um jogo histórico da seleção suíça. Se ela vencesse aquele jogo, se classificaria, sem depender dos outros resultados, para a Copa do Mundo de 1994, nos Estados Unidos. Ele dizia que o jogo seria ao vivo e o juiz só apitaria o início da partida quando eu terminasse de almoçar. E, claro, eu acreditava. Me sentia a pessoa mais importante do mundo. Imaginava as vaias de um estádio lotado, esperando eu terminar de mastigar a última garfada do purê de cenoura. Olha só! Eu atrasando uma partida oficial de eliminatória da FIFA?! Eu me sentia microdeus! Os pais têm esse poder de transformar pequenos mortais em seres mitológicos. Ainda ouço a impaciência dos torcedores helvéticos!

O futebol sempre foi uma desculpinha para passar mais tempo ao lado do meu coroa. Eu tinha certeza que durante aqueles noventa minutos meu pai era meu, só meu. Ele também tinha a mais absoluta certeza que por uma hora e meia eu seria dele, só dele. E nada nos separaria. Nem a voz do aeroporto chamando o número do meu voo. Nem o telefone tocando para uma reunião de última hora. Minha função tática era simplesmente rezar para o jogo não ter fim. Minha única estratégia para vencer a partida era mentalizar para que o jogo fosse para a prorrogação. Os acréscimos, naquele momento, representavam muito mais do que alguns minutinhos a mais de bola rolando. Eram os acréscimos do abraço de um pai. Eram os acréscimos de um olhar de um filho. Eram os acréscimos de um amor infinito.

Pai, não quero mais chorar na sala de embarque.

Nem eu, meu filho, nem eu…

 

Pedro Gabriel nasceu em N’Djamena, capital do Chade, em 1984. Filho de pai suíço e mãe brasileira, chegou ao Brasil aos 12 anos — e até os 13 não formulava uma frase completa em português. A partir da dificuldade na adaptação à língua portuguesa, que lhe exigiu muita observação tanto dos sons quanto da grafia das palavras, Pedro desenvolveu talento e sensibilidade raros para brincar com as letras. É formado em publicidade e propaganda pela ESPM-RJ e autor de Eu me chamo Antônio Segundo – Eu me chamo Antônio e Ilustre Poesia.

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Comentários

8 Respostas para “[ACRÉSCIMOS]

  1. E eu estou aqui chorando com esse texto maravilhoso. Gostaria de ter um pai assim, mesmo que ausente. O amor verdadeiro cresce tanto que ele pode chegar onde ele quiser.

  2. Eu queria chorar na sala de embarque, mas hoje o que me resta é o canto escuro do meu quarto. Eu queria poder esperar ansioso contando cada hora e até os segundos só pra que decolar de novo nos seus braços, mas já estou sem área de pouso. Eu queria que fosse só um oceano atlântico que nos separasse, mas a distância é muito maior. Eu queria, eu queria muito, mas o conflito entre o querer e o poder vai muito além do que podemos imaginar.

  3. Apaixonada se tornou uma palavra frequente em meu vocabulário ao ler seus textos. A você, sucesso e poesia!

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