[Confesso aos cães]

Por Pedro Gabriel

19 / janeiro / 2015

pedro_gabriel

Já tive muitos cães, mas nenhum deles foi realmente meu. Zico, um legítimo pastor-alemão, é o primeiro latido que me vem à memória. Pertencia ao meu pai. E olha que o meu pai, apesar de suíço, sempre foi vascaíno. No mundo das quatro patas não há essa rivalidade cafona e muitas vezes violenta que existe no mundo das quatro linhas. Um vascaíno pode muito bem batizar o seu melhor amigo com o apelido do maior ídolo do seu maior rival.

Lembro que além de comer a bola (infelizmente não é uma metáfora), Zico também infernizava os zagueiros do portão de toda a vizinhança. Driblava o shar-pei com uma habilidade impressionante, a ponto de deixar o seu adversário todo enrugadinho. O poodle da casa ao lado se descabelava todo só de ouvir as patatas de Zico pela redondeza. Mas ele era tudo, menos burro. Sabia a hora de se recolher e pensar na vida. Ficava mansinho, mansinho quando o rottweiler dava as caras pelo bairro. Por ser muito novo, eu não cheguei a conversar com o Zico sobre as minhas inquietações. Se é que se tem inquietações aos dois anos de idade. Hoje Zico se chama saudade.

Depois veio a Pacifique, uma autêntica vira-lata. Tinha nome de oceano, traduzido para o francês para dar um ar de élégance ao bichano sem pedigree e com três patas. Ela nunca sentiu falta da patinha dianteira. Talvez porque nunca a teve. Ela se adaptou à sua realidade e viveu bons anos numa paz que não se encontra nem mesmo em um cão-tibetano. As donas da Pacifique eram as minhas duas irmãs mais velhas. Nunca soube exatamente a história dela. O que sei é que ela foi encontrada num depósito de lixo perto de minha casa em Cabo Verde e que nunca chegou a atravessar o oceano. Confessei a minha infância toda àquela cadelinha. Sempre que precisei, estendeu-me sua pata imaginária e latiu alguns conselhos. Pacifique foi testemunha dos momentos mais felizes da minha vida. Quando morreu, as lágrimas das minhas irmãs dariam para encher o Pacífico inteiro.

Já o Toddy, pertencia à minha irmã mais nova. Um típico cocker spaniel. Roía tudo: do sofá à Bíblia, nada era esquecido. Deus perdoa, Toddy não. Que pecado! Confessei a minha pré-adolescência inteirinha àquelas imensas orelhas. Tadinho do Toddynho, era obrigado a ouvir minhas peripécias de moleque, minhas primeiras paixões e a primeira vez que consegui me conectar à internet sem ter que ocupar a linha telefônica da casa. Hoje é ridículo escrever isso, mas naquela época entrar na internet era uma aventura e tanto. Com as constantes mudanças da minha família, não pudemos cuidar dele por muito tempo. Foi morder os cômodos da casa da dona Miriam, uma amiga da minha avó. Suas orelhas devem estar vermelhas de tanto a gente falar nele.

Na idade adulta, ainda não encontrei nenhum canino disposto a ouvir minhas confissões. Talvez envelhecer seja justamente aprender a se tornar o seu próprio cão e levar as suas lembranças para passear todos os dias. Depois, voltar para a casa e esperar o tempo bater à porta latindo novas histórias.

Pedro Gabriel nasceu em N’Djamena, capital do Chade, em 1984. Filho de pai suíço e mãe brasileira, chegou ao Brasil aos 12 anos — e até os 13 não formulava uma frase completa em português. A partir da dificuldade na adaptação à língua portuguesa, que lhe exigiu muita observação tanto dos sons quanto da grafia das palavras, Pedro desenvolveu talento e sensibilidade raros para brincar com as letras. É formado em publicidade e propaganda pela ESPM-RJ e autor de Eu me chamo Antônio Segundo – Eu me chamo Antônio e Ilustre Poesia.

VER TODAS AS COLUNAS

Comentários

7 Respostas para “[Confesso aos cães]

  1. Olá, gostaria de dizer em primeiro lugar adoro de paixão os seus textos e guardanapos!!! Além de ser adorar animais. E em segundo uma dica: muitos cãezinhos vira-latas estão na espera para serem adotados, não seria uma boa você ter um confidente seu de verdade? Assim também inspiraria as outras pessoas. Abraços, Heloisa.

  2. Todas às terças – feiras fico encantada com seus textos. Hoje fiquei enCÃOtada. Lindo. Beijos, poeta.

  3. Como não ama-lo ? O meu poeta Pedro Gabriel :3

  4. Parabéns Gabriel, seus textos são incríveis, inspiradores. Toda semana eu fico ansioso a espera do novo texto! 🙂

  5. Acho que está na hora de ter um cão para ser realmente seu 😉

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *