Entrevistas

A constelação particular de Anthony Marra

28 / janeiro / 2015

Por João Lourenço*

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Anthony Marra deu várias voltas antes de chegar onde queria. Descobriu a paixão pela literatura durante um curso de escrita criativa para idosos, na época em que morava em Washington, D.C. Cercado de aposentados, aprendeu que poderia modificar o passado e criar um futuro mais interessante apenas com o poder da imaginação.

Em Uma constelação de fenômenos vitais, seu livro de estreia, Marra analisa a vida de um grupo de pessoas que passa por situações extremas. Interessado em contar uma história de superação, amizade e amor que se passasse em uma terra arrasada — a Chechênia no período entre guerras —, criou um romance em que nenhum personagem é desprezado, e todos expõem sua visão de mundo. Em entrevista por Skype, o autor fala sobre o processo de criação da obra.

João Lourenço: Certa vez, o escritor chileno Roberto Bolaño disse que nasceu em uma família preguiçosa e ignorante, em que ninguém gostava de ler. Sozinho, ele descobriu o poder transformador da leitura. Essa é uma discussão interessante, pois antes de ser um bom escritor é preciso ser um bom leitor. Começamos a ler sozinhos ou esse é um hábito que se adquire em casa ou na escola? Como foi o seu processo?

Anthony Marra: Se você recebe uma educação sólida, provavelmente será mais fácil valorizar determinado padrão artístico ou cultural. É importante ter alguém que lhe mostre o caminho, mas nem todos têm as mesmas chances. Logo, creio que essa não é a única maneira de se tornar um bom leitor. Para mim, a leitura veio por meio dos livros de Michael Crichton (O parque dos dinossauros) e Tom Clancy (A caçada ao Outubro Vermelho). Lembro-me de devorá-los quando criança. Fui influenciado um pouco por meus pais, mas eles liam basicamente revistas e jornais.

Não venho de uma família de professores de literatura, de acadêmicos. No entanto, meu pai gostava dos livros de John Grisham e de vários autores best-sellers. Meus pais tinham um sótão enorme, e era lá que guardavam os livros. Minha lembrança mais forte desse período é de subir no cômodo e ficar fascinado pelas formas e aromas daqueles exemplares desconhecidos. Eu costumava carregá-los pela casa, mesmo que não fosse lê-los. Descobri que o objetivo de um bom livro é fazer você se esquecer um pouco da vida. Como leitor, procuro aquele sentimento de ficar alheio a tudo a meu redor, aquele momento em que você fica submerso em algo que outra pessoa sonhou e depois transcreveu e colocou entre duas capas. A capacidade da literatura de fazer você se esquecer de você mesmo é maravilhosa. Então, eu diria que sou responsável pela minha busca artística. Aos poucos, descobri autores que todo bom leitor descobre, como Charles Dickens e outros.

JL: Quando você percebeu que era possível fazer da escrita uma profissão?

AM: Foi após o ensino médio. Não fui para a faculdade de imediato. Na época, eu morava em Washington e trabalhava na agência postal ao lado da casa de meus pais. Todos meus amigos foram para a faculdade e eu não tinha nada para fazer. Então entrei para um curso de escrita criativa em um centro comunitário para idosos e aposentados. Eu era o único jovem lá; provavelmente a diferença mínima de idade entre mim e os demais alunos era de cinquenta anos. Toda semana a gente se encontrava para ler e compartilhar nossas redações. Esses textos me fizeram sentir pela primeira vez que eu tinha alguma chance na literatura. Antes, eu acreditava que seria um cientista, mas sempre fui péssimo em matemática e não conseguia lembrar as fórmulas químicas. Escrever ficção foi minha saída; acredito que me apaixonei por isso ao perceber que a escrita é uma forma de mentira, uma forma de inventar coisas. Lembro-me da sensação de euforia. Sabe, você pode pegar um pedaço de papel na China e um pedaço de papel no outro lado do mundo e eles são iguais; não importa o lugar, o papel e a ideia de transformá-lo com a força da imaginação serão sempre os mesmos. As diversas possibilidades de criar algo inteiramente seu me animaram. Desde então, comecei a escrever mais e mais, mesmo sabendo que era terrível, e nunca perdi de vista essas possibilidades.

CAPA_UmaConstelacaoDeFenomenosVitais_300dpiJL: Uma constelação de fenômenos vitais se passa no período entre as guerras da Chechênia, um lugar não muito explorado pela literatura. Por que a Chechênia? 

AM: Fiz intercâmbio em São Petersburgo, na época de faculdade, e frequentemente me deparava com grupos de cadetes marchando para todos os lados, sempre em uniformes impecáveis. Às vezes eles passavam por uma estação de metrô que tinha se tornado uma espécie de ponto de encontro dos veteranos de guerra russos. A diferença de idade entre os cadetes e os veteranos, que tinham servido nas guerras da Chechênia, era mínima. Os veteranos se aglomeravam na estação para mendigar tostões nas horas de movimento. Também vestiam uniforme, mas não tão alinhados como o dos cadetes. A cena me marcou. Era como se os mais jovens vissem neles o futuro, cheios de incerteza e medo ao ver os colegas derrotados pela guerra — muitos voltaram mutilados da Chechênia. Em contrapartida, os mais velhos recordavam o passado e a juventude que precisaram abandonar ao ir para a guerra. Nesse momento, imaginando o que separava esses dois grupos, passei a me interessar pelos conflitos que ocorreram na Chechênia.

JL: Você chegou a visitar a Chechênia. Como foi seu processo criativo?

AM: Por um tempo, li tudo que encontrei sobre os conflitos, mas não pensava em escrever. Estava obcecado por aquele canto esquecido do mundo. Anos mais tarde, fiz uma oficina de escrita em Iowa e comecei a considerar a hipótese de escrever uma história que se passasse na Chechênia. Tentei encontrar um romance, em língua inglesa, que tivesse a região como cenário e abordasse o período entre as duas guerras, mas não achei nada. Isso me motivou a escrever. Comecei então a trabalhar no que veio a ser Uma constelação de fenômenos vitais. De certa forma, escrevi o livro que gostaria de ler, que gostaria de encontrar nas prateleiras. Quando estava escrevendo, não pensava em um romance histórico; minha ideia era mais voltada para algo pós-apocalíptico, como A estrada, do Cormac McCarthy. Fiz várias tentativas frustradas de visitar a Chechênia, e só consegui quando estava terminando o livro.

JL: No livro há vários flashbacks. Apesar de a ação principal ocorrer em um período de apenas cinco dias, você voltou no tempo para apresentar a vida dos personagens. Foi uma escolha intencional fugir da narrativa linear?

AM: Acho que dois motivos me fizeram desistir da estrutura linear. Em primeiro lugar, senti que contar uma história sobre pessoas que tiveram a vida devastada em uma estrutura de começo, meio e fim não funcionaria. Pense só: quando há guerra e acontecimentos dramáticos, a sensação de passagem de tempo também é interrompida. E em segundo lugar, talvez a razão mais importante tenha sido a de que, no fundo, eu não achava que fosse conseguir manter o ritmo da trama em um romance que cobrisse linearmente um período de dez anos — desde o começo da primeira guerra na região do Cáucaso até o final da segunda. Acredito que quanto mais abrangente a trama, maior a chance de o autor deixar pontas soltas e falhas, maior a chance de ele se perder na narrativa. Percebi que ir e voltar no tempo me ajudaria a cobrir as áreas de aspecto emocional e psicológico dos personagens. Dessa forma, narrei todo o período de tempo que tinha em mente e não corri tanto risco.

JL: Em seu livro não há super-heróis nem a noção clara de bem e mal. Todos foram arrasados pela vida. Apesar de se tratar de um romance realista e recheado de detalhes daquele canto desconhecido do mundo, não é didático. Você concorda?

AM: Sim, com certeza. É engraçado, pois comecei a escrever em 2008, apenas quatro anos depois de os eventos narrados no início do livro terem terminado. Talvez por isso eu nunca tenha considerado escrever um romance histórico. Para mim, é uma ficção bastante contemporânea. Nada destrói mais o brilho de um livro de ficção do que você sentir que está tendo uma aula de história. E acredito que o mesmo acontece quando você acha que os personagens estão seguindo uma cartilha de comportamento, que basicamente costuma variar entre herói e vilão. Mas eu só fui entender isso, que esse tipo de personagem não iria funcionar no livro, já imerso na história. No primeiro rascunho, Akhmed era uma espécie de herói. Depois que li, percebi que ele não era interessante. É muito mais interessante ver alguém que está lutando, que falhou e percebeu que a vida está sendo uma grande decepção, que não está conseguindo atender às próprias expectativas. Foi importante tratar os personagens como seres humanos, com interiores complexos e vidas ricas, sem julgá-los.

JL: Costuma-se dizer que há uma maldição em um romance de estreia que faz sucesso. Você já sente essa pressão?

AM: Esse é um daqueles problemas bons de se ter. É melhor conviver com as expectativas do que não ter nenhuma. Sinto que muitos leitores aqui nos Estados Unidos, e espero que no Brasil também, apostaram no livro; apostaram na leitura de um romance que se passa em um tempo e espaço bastante desconhecidos da maioria. Em muitos casos, a surpresa tem sido positiva entre os leitores e tudo o que desejo é alcançar o mesmo êxito no próximo livro.


João Lourenço
é jornalista. Passou pela redação da FFW MAG!, colaborou com a Harper’s Bazaar e com a ABD Conceitual, entre outras publicações estrangeiras de moda e design. Agora, está em NYC tentando escrever seu primeiro romance.

Comentários

2 Respostas para “A constelação particular de Anthony Marra

  1. Bem interessante essa entrevista! Não tive a oportunidade de ler o livro ainda, mas após essa publicação fiquei muito animado para lê-lo. Espero que consiga em muito breve! 🙂

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