[UM DEVANEIO DE GELADEIRA]

Por Clarice Freire

11 / dezembro / 2014

Coluna 16 - Opção 2

A geladeira lá de casa nunca guardou apenas comida. Só nas madrugadas, talvez, quando a fome bate na porta já que você esquece as horas sem comer e o relógio fica avançado para o tempo dele. É normal. Pelo menos pra mim, que nunca fui exatamente um bom sinônimo de normal.

Na verdade sempre tive dificuldades em encontrar sinônimos meus por aí e isso às vezes é tão bom quanto só. Uns sinônimos fazem bastante falta de vez em quando e tanta singularidade, pode crer, tem suas chatices.

Mas este devaneio é sobre a geladeira lá de casa, não sobre sinônimos – existe sinônimo para geladeira? Coitada – acabei de ir até ela, agora mesmo, procurando uma ideia. Abro e fecho a porta, ela não estava lá. Anteontem, vi a minha irmã abrir a porta buscando uma melodia para sua música, enquanto ela se segurava entre os iogurtes batendo o pé ritmadamente, com a mão no queixo. As geladeiras são ótimas conservantes de cantigas.

Observe bem. Sua tia avó provavelmente abriu a porta, cantarolou e foi embora flutuante alguma vez.

Digo isso porque as pessoas chegam distraídas, abrem a porta da geladeira, fazem algo particular da sua coisa buscada em questão e vão embora determinadas a sabe lá o quê sem nunca pegar comida. Nunca. Ou melhor, quase nunca, não esqueçamos das madrugadas.

Elas agarram alguma coisa invisível congelada por entre as cumbucas e potes gélidos. Algumas vezes saem frustradas, mas eu entendo. Se suas perdas não estão na geladeira, estão onde, meu Deus do céu?

Ontem, por minha vez, abri a porta ao meio-dia, procurando teimosia e ela estava, como sempre, muito fria. Essas coisas não se esquentam no forno, todo mundo sabe.
Pois. Entre o meu abrir e fechar de portas, estou aprendendo a deixar as friezas pra lá.

 

 

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Clarice Freire nasceu no Recife, em 1988, e desde muito cedo aprendeu a usar as palavras para acalmar suas inquietações. Cresceu admirando os desenhos em lápis de cor da mãe, Lúcia, e os versos do pai, Wilson. Uma noite, ouviu falar que a lua era bela porque, mesmo sendo só areia, deixava refletir a luz de outro, e por isso as noites não são escuras. Daí veio a inspiração para o nome de sua página no Facebook, Pó de Lua, criada em 2011.
Clarice escreve, quinzenalmente, às quintas.

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Comentários

2 Respostas para “[UM DEVANEIO DE GELADEIRA]

  1. De vez em quando me perco em devaneios e assim me encontro, as vezes perco até o sono e depois que percebo que devo dormi dou um tempo dos devaneios e vou para os sonhos.
    Seu ponto de visto de Devaneio de Geladeira é maravilhoso, agora sempre que eu passar por ela ou chega a abri-la vou lembrar que ela não é apenas fria e permanentemente parada, a geladeira tem uma vida interessante e quem sabe se ela falasse o quanto nos contaria.

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