[QUERIA QUE SEU CORAÇÃO NÃO PIFASSE]

Por Pedro Gabriel

9 / dezembro / 2014

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Meu avô parece ter nascido com a mesma idade que me deixou. Setenta e um anos. A puberdade nem ousou se apossar de seu corpo. Pelinho no sovaco é coisa de adolescente, não pertente à categoria dos avós. O cabelo grisalho é de berço. As rugas já vieram de fábrica. Fazem parte do pacote completo “Nasci para ser Avô”. Para ser bem sincero, não o imagino aos sete anos fazendo birra na hora de arrumar o quarto. Respeita a sua mãe, (no caso, a minha bisa), vôzinho! Não o imagino aos treze anos inventando uma desculpa esfarrapada por não ter feito a lição de casa. Não o imagino aos dezessete gaguejando ao abrir seu coração para a primeira namorada (desculpa vó, mas a senhora já está bem grandinha para ler essas coisas). Não o imagino aos trinta e três pedindo exoneração de um cargo público. Muito menos o imagino aos cinquenta e seis planejando a aposentadoria. Uma casa de praia com cães adestrados nunca foi o seu sonho. Ele não nasceu para ser egoísta. Se pudesse, dividiria seu FGTS com toda pessoa que encontrasse pelo caminho. Doutor Ênio veio ao mundo com setenta e um anos e pronto!

Se fosse juiz, faria uma lei irrevogável. Mudaria a Constituição. Ninguém mais teria o direito de ser nomeado Ênio até completar setenta e um anos. Quem se chama Ênio não sabe matar aula. Quem se chama Ênio não conhece outro lugar a não ser a primeira fileira da sala, quase mais à frente do próprio professor. Ênio só sabe ensinar. O cérebro dele devia ser bem desgastado, tadinho. Mas de tanto usar! Sortudo. Finalmente, alguém com capacidade de usar o cérebro até seu limite. É raro! Seu primeiro lugar no vestibular de medicina de 1951 é testemunha. Uma espécie de Google antes de o Google ser uma espécie de inteligência terceirizada. O Google deveria se chamar Ênio. Desconfio que esse nome foi cogitado na reunião de marketing da empresa e quase foi escolhido, mas, por não se encaixar nas exigências do mercado internacional, acabou descartado rapidamente. O coração nunca bateu o martelo das grandes decisões corporativas.

Meu avô parece ter nascido com a mesma idade que me deixou e com aqueles óculos grandões e com aqueles cabelos grisalhos e com aquela cicatriz no nariz – brinde de uma cirurgia que não deu muito certo esteticamente, mas se não fosse ela, ele não teria cara de avô. Aquela cicatriz combina tão bem com os seus óculos. Parecem uma dupla insuperável. Tipo Tom e Jerry, Mônica e Cebolinha, Pelé e Coutinho. Parecem aqueles produtos chineses nos quais óculos e nariz se confundem em um único objeto frágil e descartável. Daqueles que se compram nos camelôs do centro da cidade. Queria poder encontrar o meu avô em uma dessas barraquinhas. Mas, no meu avô, nada seria falsificado. Muito menos barato. Aliás, sequer teria preço. Só queria que fosse fácil reconstruí-lo. Ele seria exatamente igual, sem uma ruga a mais ou a menos. Talvez com um pouco mais de eternidade. E se for pedir muito pedir eternidade, que ele tivesse ao menos órgãos originais: pulmões a todo vapor, rins de dar inveja a qualquer filtro de Instagram, fígado com aplicativo anticirrose, veias com sistema de desentupimento on-line 24h e, claro, um coração que não pifasse da noite pro dia.

Ah, como ele mesmo costumava brincar: Para eu ser gÊnio, só falta o G, Pedrinho. Concordo e vou além: Vô Ênio, para o senhor ser saudade, não falta mais nada.

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Pedro Gabriel nasceu em N’Djamena, capital do Chade, em 1984. Filho de pai suíço e mãe brasileira, chegou ao Brasil aos 12 anos — e até os 13 não formulava uma frase completa em português. A partir da dificuldade na adaptação à língua portuguesa, que lhe exigiu muita observação tanto dos sons quanto da grafia das palavras, Pedro desenvolveu talento e sensibilidade raros para brincar com as letras. É formado em publicidade e propaganda pela ESPM-RJ e autor de Eu me chamo Antônio Segundo – Eu me chamo Antônio e Ilustre Poesia.

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Comentários

7 Respostas para “[QUERIA QUE SEU CORAÇÃO NÃO PIFASSE]

  1. Encantador, amo você Pedrinho, Parabéns pelo sucesso! Você merece, continue encantando <3

  2. Esse texto, como todos os outros, é de tirar sorrisos e até mesmo lágrimas dos olhos de quem lê. E com certeza, dá pra imaginar suas caras escrevendo essas frases lindas. Eu adoro seus textos e dá pra perceber sua saudade e seus sentimentos nas suas palavras. Abraços, Ana.

  3. Muito bom!! História parecidíssima com a minha e do meu vôzao… Suas palavras tocaram e confortaram meu coração ao faze-lo relembrar de alguns momentos guardados em memória… Mais uma vez, parabéns !

  4. Se mencionou os avós, o coração já fica mais leve. Parabéns!

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