Os viajantes e as ladeiras da literatura

Por Clarice Freire

7 / novembro / 2014

Coluna 13 - Os viajantes e as ladeiras da literatura

Fórum das Letras.

Ser viajante é um dom, penso eu. Ou se nasce viajante, ou não se torna viajante. Você pode pensar: “mas se alguém, por ventura, arruma um trabalho que o obriga a rodar o mundo, por exemplo?”. Ou talvez até uma criatura que só queria ficar num cantinho quente, aconchegado com seu amor, pode, por desventura, perdê-lo. Daí não terá outra opção senão viajar e viajar pelas ruas, pelos corações solitários por aí para reencontrá-lo, nem que seja para trazê-lo de volta e nunca mais sair.

Bonito, mas eu discordo.

Acredito que se nasce viajante e ponto. Estes casos acima citados são de criaturas trabalhantes, procurantes ou amantes. Jamais viajantes. O viageiro em questão não precisa sequer perder um amor, ser promovido, ter uma ilusão admirável ou uma desilusão incurável. Ele caminha. E se você for um exemplar desta espécie já deve compreender o que digo. Este tipo de gente está sempre fora do lugar, sempre deslocado; parece que seu local presente está apenas servindo como plataforma de deslocamento para outra rua, outra praça, outro país, outro mundo e até mesmo outros universos.

Normalmente – se é que se pode se usar este modo para um viajante – eles adoram a literatura. Ela é um passaporte fácil, um ticket premium, um bilhete instantâneo que lembra bastante uma pílula: tome e espere o efeito. Neste caso, de deslocamento. É simples assim. E por estes últimos dias eu tive a oportunidade de me encontrar com vários exemplares destas criaturas estranhíssimas, porém adoráveis. Os amantes da leitura, vulgo, viajantes.

Estive em Belo Horizonte e Ouro Preto para participar do Fórum das Letras dividindo uma mesa com os queridos Pedro Gabriel, Marina Carvalho e Wagner Merije.  Foi uma oportunidade linda, única e sinceramente inesquecível por tantas coisas, que começaram pelo afeto, gentileza e simplicidade do povo mineiro, às comidas fartas que me lembraram minha terrinha e até as ideias trocadas, as descobertas e as ladeiras. Muitas ladeiras.

Falou-se muito, entre vários outros temas, em internet. Vi escritores veteranos, pelos quais tenho profunda admiração, parando para ouvir sobre o assunto. Quem tem medo dela? Falamos sobre o valor desta plataforma usada pela literatura, mas a literatura é coisa dos viajantes; nasce conosco e não precisa nem das páginas respeitadas dos livros, muito menos do espaço democrático da internet para ser. Nos aproveitamos de todos estes meios para dizer, para dar vida às nossas epopeias poéticas ou não. E eis o nosso mundo de hoje! Prazer. Ele nos dá infinitas possibilidades, inclusive ao ticket literatura: “just use it well”.

[Diziam, me falavam da magia de Ouro Preto.
Já começo a acreditar que a história gosta de passear por aquelas ruas bastante vivas. Bastante jovens. Dá para tocar, tomar um café com ela. Acho por bem dizer que os tijolinhos e igrejonas me convidaram a olhar boquiaberta para suas formas disformes. Meio boba. Meio tonta. Meio apaixonada. Descansei as pernas bambas no quarto à noite com uma sensação de coração aceso e aquecido por lamparina, daquelas antigas. Já viram? E me peguei encantada até pela maçaneta da porta. Isso mesmo. A maçaneta. Ela é linda.
Será que é grave, doutor?
Sentei na cama e um saxofone começou a ecoar de algum lugar que não identifiquei pela janela. E ele tocava Beatles. Acho que era Ouro Preto dizendo: bem-vinda. Eu te conheço. Depois de outras horas de frio, um cachorro uivou. Outros responderam. De repente todas as ladeiras uivavam em coro e aqui elas têm um eco enorme para impressionar. Confesso que conseguiram, pelo menos comigo. Depois dizem que as paredes não falam.]

Acordei com a música dos sinos dizendo que era hora de viajar de volta para casa. Comemoremos! Porque a minha nunca será um local estável e parado, apenas mais uma plataforma para gente como eu e, talvez, você também, caro leitor internético, se lançar em lindas viagens.

Clarice Freire nasceu no Recife, em 1988, e desde muito cedo aprendeu a usar as palavras para acalmar suas inquietações. Cresceu admirando os desenhos em lápis de cor da mãe, Lúcia, e os versos do pai, Wilson. Uma noite, ouviu falar que a lua era bela porque, mesmo sendo só areia, deixava refletir a luz de outro, e por isso as noites não são escuras. Daí veio a inspiração para o nome de sua página no Facebook, Pó de Lua, criada em 2011.
Clarice escreve, quinzenalmente, às quintas.

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Comentários

Uma resposta para “Os viajantes e as ladeiras da literatura

  1. Adoro seus textos, são bonitos e calmantes felicidades,beijos

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