[O Eternizador de Poetas]

Por Pedro Gabriel

18 / novembro / 2014

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Semana passada, Manoel nos deixou. Foi de mansinho, sem avisar, feito pássaro invisível. Nos podou de sua presença física para virar riacho, ou nuvem, ou pedra, ou assobio. Ele agora vive nos quintais de nossa imaginação.

Meu primeiro contato com a obra de Manoel foi por acaso. Como quem levanta uma pedra do chão para achar o desconhecido, eu fuçava a prateleira de poesia em uma livraria. Os nomes dos livros me chamavam a atenção. Minha curiosidade entrou em cena, ganhou mais importância do que o meu raciocínio. Mas quem era afinal aquele inventor capaz de construir o amanhecer? E quem era aquele sujeito com a coragem de chamar o artista de coisa? E quem era aquele homem com a ousadia de ver beleza em uma rã? E quem era aquele menino com a capacidade carregar água na peneira? Fiquei fascinado. Oba! Existe alguém que valoriza a delicadeza do nada. Eba! Finalmente alguém resgatou o desejo pelo nada e enxergou a importância das coisas teoricamente inúteis.

Acabei comprando a obra completa e não me arrependi. Talvez a melhor compra que tenha feito em toda minha vida. Nunca mais enxerguei a vida da mesma maneira. O grau dos óculos de Manoel era um misto de lupa com raios x. Entrava a fundo na alma das flores, penetrava sensivelmente no coração das pedras e aumentava com maestria as belezas invisíveis à pequenez do olhar humano. Até hoje tenho dificuldade para escolher qual é o meu livro preferido. Quando ameaço dizer que é O fazedor de amanhecer (2001), o Livro das ignorãças (1993) me olha com dó e eu me recolho na minha própria ignorância para não magoá-lo. Quando me convenço que o Livro sobre o nada (1996) é o que mais se aproxima da perfeição divina, a Gramática expositiva do chão (1966) me traz de volta para a terra e finca meus pés na areia da dúvida.

Ele é mesmo danado, esse criador de mundos! Não deixa a poesia ganhar rugas, os versos formam uma espécie de rio no nosso rosto. Atenção, Vaidade! Ler Manoel de Barros é melhor do que qualquer creme antirrugas. Quando leio seus poemas, parece que estou no quintal de uma casa imaginária brincando com seus versos, enquanto espero a minha mãe gritar: Tá na mesa, Pedrinho!. Queria ter o poder do Manoel e poder também criar coisas incríveis. Teria criado especialmente para ele o Eternizador de Poetas – uma máquina com a capacidade de proteger a vida desses seres que entopem o mundo de sensibilidade.

A janela da imaginação está aberta. Do outro lado do quintal, um pássaro desperta de seu ninho. Seria uma nova espécie de João-de-Barro? Olha, mãe, é ele! Olha! Um legítimo Manoel-de-Barros, do Reino da Poesia, da Classe das Coisas, da Ordem dos Versos, do Gênero do Nada e da Espécie dos Imortais. Viu, mãe? Viu, viu, viu, mãe?

Ele abre as asas, assovia um novo poema ao pé do ouvido do vento e desenha nas nuvens com a beleza de sua pena: fui brincar em outro quintal.

Bom voo, Manoel.

Mande-nos versinhos de vez em quando. A gente precisa também conhecer a nossa insignificância.

Pedro Gabriel nasceu em N’Djamena, capital do Chade, em 1984. Filho de pai suíço e mãe brasileira, chegou ao Brasil aos 12 anos — e até os 13 não formulava uma frase completa em português. A partir da dificuldade na adaptação à língua portuguesa, que lhe exigiu muita observação tanto dos sons quanto da grafia das palavras, Pedro desenvolveu talento e sensibilidade raros para brincar com as letras. É formado em publicidade e propaganda pela ESPM-RJ e autor de Eu me chamo Antônio Segundo – Eu me chamo Antônio e Ilustre Poesia.

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Comentários

2 Respostas para “[O Eternizador de Poetas]

  1. Essas, com certeza, foram as palavras mais lindas que li para o nosso eterno poeta Manoel de Barros. Imagino que se ele tivesse lido, do mesmo modo que eu, teria se debruçado suas lágrimas. <3

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