[É difícil]

Por Pedro Gabriel

25 / novembro / 2014

coluna 38

É difícil assumir isso hoje, mas quando menino eu jurava de pezinho junto que todo edifício se chamada Ed. Carinhosamente, gesticulava os lábios até encaixar a sonoridade exata para pronunciar: “Tio Ed” ou, quando acordava mais saudoso, “Vô Ed”.

O nome de família diferenciava a origem daquela construção. O Ed. Central pertencia às pessoas sem direcionamento político: nem esquerda, nem direita. O Ed. Mota seria um prédio que faz barulho, uma caixa de música tamanho família. Já o Ed. Murphy deveria ser o monumento mais engraçado do pedaço. Para afastar ainda mais a possibilidade de erro, caso algum herdeiro (tijolinho?) quisesse reivindicar a paternidade, um número talhado logo após as letras foi a solução encontrada pelos engenheiros. Por exemplo, eu sou filho do Ed. Anhorn, número 47. Aquela menina, que atravessa a rua enquanto escrevo esse texto, é a neta mais velha do Ed. Saldanha, número 1.990.

 Mas quem será esse danado de Ed que revolucionou o modo de as pessoas se abrigarem? Será que ele salvou o mundo de uma guerra nuclear e seu prêmio foi ter as iniciais de seu nome gravadas em todo monumento edificado? Na minha inocência pueril, ainda acreditava que os batimentos de concreto tinham um quê de emoção. Sei lá… Pensei que eles também pudessem ter batimentos cardíacos, feito nós humanos.

 Sair para passear era uma forma romântica de visitar a extensão da minha família estática. Cada prédio era um novo personagem da minha árvore genealógica que me era apresentado. Na minha rua tinha um monte de parentes enfileirados. Alguns com jardins imensos, onde dava para se esconder para fugir da idade adulta. Outros, com grades gigantescas, nas quais eu poderia fingir que era um preso. Ai, ai… como os tempos mudaram! Hoje nem preciso brincar para saber que estamos condenados a fingir que somos livres. Os edifícios mais bonitos eram coloridos e tinham varandas avantajadas e tinham sempre uma menina bonita olhando pela janela. Quem é ela? Os mais melancólicos apresentavam tons sombrios, e sempre tinham o som do latido de um cachorro invisível ao fundo. Deve ser esse mesmo cãozinho que late todos os domingos na praça onde moro. Nunca foi visto. Será que já foi ao veterinário? Será que pede ajuda? Será que pede uma bolinha para brincar? Será que está ofendendo aquele senhorzinho rabugento? Gosto mais de pensar que ele esteja apenas declamando, mesmo com raiva, todos os sentimentos do mundo canino.

Independente da beleza arquitetônica ou da dimensão faraônica, todos tinham algo em comum. Todos me eram próximos. Como se ali vivesse um tímido e imponente membro da minha família ou um amigo de longa data. Desses que não gostam muito de conversar, mas estão sempre por perto para dar sombra e quintal à fragilidade das nossas lembranças. Todos devidamente e divinamente enfileirados como se a qualquer mínima distração, um coronel (o tempo?) passasse por aquela rua e exigisse que todos, sem exceção, ficassem em posição de sentido.

 Hoje, eu vivo no Ed.Presidente Vargas, um prédio que se matou. Dizem…

Pedro Gabriel nasceu em N’Djamena, capital do Chade, em 1984. Filho de pai suíço e mãe brasileira, chegou ao Brasil aos 12 anos — e até os 13 não formulava uma frase completa em português. A partir da dificuldade na adaptação à língua portuguesa, que lhe exigiu muita observação tanto dos sons quanto da grafia das palavras, Pedro desenvolveu talento e sensibilidade raros para brincar com as letras. É formado em publicidade e propaganda pela ESPM-RJ e autor de Eu me chamo Antônio Segundo – Eu me chamo Antônio e Ilustre Poesia.

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Comentários

2 Respostas para “[É difícil]

  1. É pasmoso pra mim o modo e a naturalidade com que você pega vagas palavras e faz delas uma nova aventura para nós leitores desbravar. A cada texto uma nova imaginação, um novo sentimento a sentir. Aqui conheço o desconhecido e vivo o que já não vivia mais. Sentir cada frase e desenhos feitos por um homem – que se chama Antônio – inspirado a brincar com as letras num pedaço de guardanapo após um gole de cerveja, é maravilhoso. E por isso eu estou sempre pronto a fazer parte do seu jogo de letras, como leitor que se imagina como um telespectador que está sentado na mesa do canto direito assistindo Antônio despencar suas angústias e alegrias em cima de um pequeno guardanapo branco.

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