SOBRE DRAGÕES, FOGOS E PIPOCA

Por Clarice Freire

9 / outubro / 2014

Coluna 10- Sobre dragões, fogo e pipoca

Meu pai sempre dizia que aquela mancha na Lua era São Jorge lutando com um dragão.

Eu passava noites e noites tentando identificar um dragão naquela coisa indefinida e, ainda mais, esperava ver o tal cavaleiro correndo. Mas eles pareciam imóveis. Perguntando, meu pai respondia: “Você não sabe que a Terra gira muito rápido? Por isso dá a impressão que eles estão parados, mas não estão.”

Eu acreditava e ficava em uma eterna aflição. Morria de pena de São Jorge, que parecia não derrotar nunca o tal dragão enorme. E se um dia o monstro vencesse? Havia noites em que eu simplesmente esperava a notícia. O que aconteceria se o monstro ganhasse? Bom. Isso era óbvio. Ele atacaria a Terra e o mundo ia acabar. São Jorge era muito corajoso em nos proteger assim. Como as pessoas conseguiam ficar tão tranquilas se uma batalha estava sendo travada todas as noites no céu?

Até que chegou a noite de São João em Gravatá, a cidade do interior da minha mãe, depois dessa revelação seríssima. Bombas, fogos de artifício, traque de massa, rojões, tudo me deixava de sobressalto.

Fiz minha pergunta mais inteligente. Daquelas que todos devíamos fazer com esse alvoroço que o mundo insiste em viver:

– Pai, pra que isso?

A resposta foi incrível:

– Pra acordar São João.

Acordar?

– E ele está dormindo?

– Está, por isso soltamos fogos. Pra acordá-lo.

Nova aflição: o que acontece se ele não acordar?

Isso também era óbvio. A gente ficava sem São João, balão e pipocas. Pior. Podia ser que não amanhecesse. Ou que o mundo acabasse, claro. Essa é sempre uma alternativa.

Que injustiça! Enquanto um santo passava todas as noites em claro lutando bravamente para salvar a Terra, São João dormia, nos colocando em risco?

Nada fazia sentido.

O que importa é que, naquela noite, São João resolveu acordar e voltei aliviada para casa. Cheia de pensamentos obscuros sobre dragões, Lua, Santo preguiçoso, pipoca e uma noite mal dormida por causa dos fogos de artifício.

Voltando para Recife, chego à porta do elevador e observo impressionada como ele sabe exatamente onde estamos, sobe sem errar pra onde o mandamos e se move magicamente. Medo. Já estava pensando nas olheiras para a próxima pergunta. Mas a curiosidade vencia. Sempre.

– Pai.

– Oi.

– Como é que o elevador funciona?

– Tem uns homenzinhos trabalhando lá no teto. Uns cem deles, tipo duendes. Eles escutam o que a gente tá pensando e puxam as cordas.

– Mas isso não é trabalho escravo?

– Não, eles são feitos pra isso.

Agora sim eu estava chocada. E se eles não tivessem força um dia para segurar as cordas? Isso também era óbvio. O elevador cairia. Ou o mundo ia acabar, claro.

Em solidariedade a São Jorge e aos homenzinhos, evitava pegar elevador à noite, pra pelo menos alguns conseguirem dormir enquanto os outros puxam a corda. E eu fazia pipoca olhando pra Lua, esperando a notícia.

E pensar que eu adorava São João. O mundo é mesmo cruel.

Faço pipoca na segurança de casa.

 

Clarice Freire nasceu no Recife, em 1988, e desde muito cedo aprendeu a usar as palavras para acalmar suas inquietações. Cresceu admirando os desenhos em lápis de cor da mãe, Lúcia, e os versos do pai, Wilson. Uma noite, ouviu falar que a lua era bela porque, mesmo sendo só areia, deixava refletir a luz de outro, e por isso as noites não são escuras. Daí veio a inspiração para o nome de sua página no Facebook, Pó de Lua, criada em 2011.
Clarice escreve, quinzenalmente, às quintas.

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