RODA-GIGANTE E O MAR VENTANIA

Por Clarice Freire

17 / outubro / 2014

Coluna 11 - RODA GIGANTE

Lerê era um moleque daqueles para quem não adianta nem dar uma Havaiana de presente porque ele não vai usar. Não por nada, é que não precisa. Ele já criou um tipo de casco debaixo dos pés e qualquer coisa que não seja o chão é incômodo.

Lerê nasceu em Curva do Vento, perto de Botas Perdidas, um município ao lado de Lugar Nenhum. Daqueles lugares onde o “menino de Dinha” e o “Zé da Venda” ou “Tonho da Carne” são nome e sobrenome. Daqueles lugares em que TV ainda é a janela de casa e ao folhetim se assiste sentado em uma cadeira na calçada, ao vivo, na vida de “Nininha Buchuda de Carlinhos, filho do deputado”.

Lerê trabalhou desde pequeno capinando mato, vendendo picolé, recitando cordel, carregando bolsa na feira de Curva do Vento. Por sinal, ventava muito em Curva do Vento e isso, Lerê adorava. Em dia quente, Lerê gostava de subir no pé de mato mais alto do Sítio Dona Liquinha e imaginar que estava andando de roda-gigante. É que Lerê viu na TV da casa de Carlinhos, filho do deputado, um casal que rodava pra cima e pra baixo em uma dessas, toda iluminada, num vento que bagunçava seus cachecóis empacotados. Lerê pergunta:

– Carlinhos, é onde que tem uma dessa?

– Em Paris, menino, te aquieta.

– Oxe, e é longe?

Ele não teria problema nenhum em ir a pé. Nem de sapato precisava.

– Tu sabe nadar, Lerê?

– Sei!

Lerê era o rei do açude Ventania.

– Tu ia ter que nadar um ano todinho pra chegar lá. Só chega pela água. Água do mar, visse?

Lerê, que nunca tinha visto o mar, ficou preocupado. Desanimado nunca. Começou a treinar todo dia no açude Ventania. Um ano nadando, com uma jangadinha pra descansar, ele chegava na roda-gigante dessa tal Paris pra sentir aquele vento gelado no rosto. Virou o sonho de Lerê, que só fazia trabalhar dia e noite pra pagar a passagem para o litoral.

Um dia, Lerê varria o resto de feira no chão e viu chegar um parque mambembe que o padre da paróquia conseguiu trazer pra semana santa. Ele ficou doido de vontade de ficar ali pra ver os brinquedos, mas tinha que ir pra ser coroinha na hora da missa. O padre prometia bolacha e café se ele ajudasse e fosse um bom menino. Como era economia pra passagem, Lerê ia, pensando no mar.

Quando saiu da missa, o coração de Lerê quase parou de susto. Uma roda-gigante daquelas do município de Paris estava ali, linda, mais iluminada que o céu à noite, mais colorida que a feira, mais mágica que os filmes que via de espreita na janela de Carlinhos, filho do deputado. Era gigante mesmo, cabia o mundo de Lerê todinho nela. De túnica e tudo, ignorando os gritos do pároco confuso, Lerê correu para o travesseiro, pegou tudo que tinha juntado pra ver o mar e correu para o parque.

Quando chegou na frente dela, Lerê estancou. Parou e não conseguia sair de onde estava. O operador viu o menino de túnica, cheio de moedas nas mãos que chorava sorrindo, vidrado na roda, e não entendeu nada.

– Ei, moleque, tu não vai subir, não?

Lerê olhou para o homem sem saber por que tremia tanto nas pernas.

– Vou, não.

– Por quê? Tu não tem dinheiro que só aí? Tais com medo, é?

Riu-se o operador mais curioso do que divertido.

– Dá pra ver o mar lá de cima, moço?

– Vixe, dá não. O mar tá longe demais, coroinha.

Lerê foi embora decidido.

– Ei, coroinha, dá pra ver até o município de Botas Perdidas!

O menino guardou as moedas com cuidado. Pensando no mar.

– É pouco. Eu quero ver o mundo todo rodar.

 

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Clarice Freire nasceu no Recife, em 1988, e desde muito cedo aprendeu a usar as palavras para acalmar suas inquietações. Cresceu admirando os desenhos em lápis de cor da mãe, Lúcia, e os versos do pai, Wilson. Uma noite, ouviu falar que a lua era bela porque, mesmo sendo só areia, deixava refletir a luz de outro, e por isso as noites não são escuras. Daí veio a inspiração para o nome de sua página no Facebook, Pó de Lua, criada em 2011.
Clarice escreve, quinzenalmente, às quintas.

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Comentários

2 Respostas para “RODA-GIGANTE E O MAR VENTANIA

  1. Texto muito interessante com uma leve gota de emoção.

  2. Emocionante esse texto,o sonho de lerê,tinha o mar também ,não só a roda gigante ,tinha os lugares por onde passaria. Lendo o texto dá pra ir junto,trabalhando com ele ,pra juntar o dinheiro. Muito bom.

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