As palavras

Por Leticia Wierzchowski

4 / setembro / 2014

coluna 24_As palavras

Hoje eu estou um deserto de palavras, e meus corredores vazios ecoam o nada, ventam, batendo as minhas portas e janelas. Sei que é preciso ter paciência, então eu me aquieto e espero. Sei que as coisas têm em si o seu tempo, e as palavras que vão voltam trazendo sempre alguma coisa nova. Nessa espera, eu me lembro de um certo episódio da minha infância. Era uma noite de tormenta na praia, um daqueles temporais que rugem a sua fúria em ventos e trovões.  Todos os adultos estavam ocupados com as janelas, as portas e as roupas que dormiam lá fora no varal ─ os adultos ocupados com as coisas de adultos. Eu e a minha irmã estávamos lá no quarto, quietas no escuro, morrendo de medo porque faltara luz ─ numa escuridão dupla, enfiadas sob o cobertor, com medo do vento, medo dos raios, medo, medo, medo. As horas entaladas no medo, arrastando-se pela madrugada a dentro, até que finalmente dormi.

Dormi e acordei muito cedo no outro dia.

Fazia um silêncio danado e a tempestade partira. Lá fora, depois da veneziana, o sol brilhava outra vez. Ainda me lembro da sensação de alívio… Então saí do quarto sem despertar minha irmã, abri a porta e corri pela varanda ainda molhada de chuva. Havia terra, galhos e folhas espalhadas, como se uma grande festa tivesse acontecido na noite anterior e os seus restos não tivessem sido recolhidos. O céu da manhã era então de um azul lavado. Brinquei ali, feliz da vida, totalmente esquecida do medo da madrugada. No meio das folhas amareladas e murchas que o vento tinha trazido de longe, encontrei ─ como um milagre absolutamente emocionante ─ um filhotinho de pardal que o temporal arrancara do ninho.

Da mesma forma, talvez as palavras trovejem por aí, esses cavalos alados  coriscando noutros mundos, divertindo-se, causando sustos e alegrias. Elas reaparecerão decerto amanhã na varanda do meu dia, molhadas, rotas, alquebradas, bêbadas, milagrosamente refeitas, trazendo um presente para mim.

LETICIA WIERZCHOWSKI é autora de Sal, primeiro romance nacional publicado pela Intrínseca, e assina uma coluna aqui no Blog.

Nascida em Porto Alegre, Leticia estreou na literatura aos 26 anos e publicou 11 romances e novelas e uma antologia de crônicas, além de cinco livros infantis e infantojuvenis. Um de seus romances mais conhecidos é A casa das sete mulheres, história que inspirou a série homônima produzida pela Rede Globo e exibida em 30 países.

Leticia Wierzchowski nasceu em Porto Alegre e estreou na literatura aos 26 anos. Já publicou 11 romances e novelas e uma antologia de crônicas, além de cinco livros infantis e infantojuvenis. É autora de SalNavegue a lágrima e de A casa das sete mulheres, história que inspirou a série homônima produzida pela Rede Globo e exibida em 30 países.
Leticia escreve às sextas.

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