[minha timidez me obriga a tirar os óculos]

Por Pedro Gabriel

3 / dezembro / 2013

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Não sei quando começou esse negócio de não enxergar direito. Fato é que até hoje tenho uma enorme dificuldade em querer ver as coisas com nitidez. Geralmente, o que é muito perfeito me incomoda um pouco. Por isso, mesmo depois de o oftalmologista diagnosticar um grau elevado de miopia, eu sempre usei meus óculos com moderação. Meus motivos? Acho que a timidez é um deles.

Minha primeira lembrança desse isolamento visual data da infância. Eu e a minha querida miopia tentávamos brincar de bolinha de gude com os meninos da vizinhança. A regra era clara (e eu não a enxergava tão bem assim): o jogo consiste em fazer três covinhas em um percurso de ida e volta, no qual o jogador tem que colocar o seu berlinde dentro de cada cova. O chão de terra escura e a luz de final de tarde dificultavam o meu jogo. Eu não sabia onde estava a cova principal, muito menos onde se encontravam os berlindes dos meus adversários, e, envergonhado, queria me esconder nessas covinhas. Eu era o meu maior adversário.

Depois, na adolescência, a minha miopia encontrou um amigo: o astigmatismo. Agora, além da dificuldade de enxergar de longe, também tenho a vista embaçada. Lembro-me do primeiro show com a Brisa, a minha banda de indie rock alternativo. Por medo de encarar a plateia, eu não colocava os meus óculos e abaixava a cabeça. Até hoje não sei se tinha três, 20 ou 100 pessoas naquele pequeno galpão. Minha única obrigação era olhar para as teclas brancas e pretas, pretas e brancas, brancas, brancas, pretas, brancas, pretas… Pânico! Sorte a minha que o meu instrumento era o teclado (santificado seja o seu inventor! Aposto que ele era tímido também e fez da sua invenção uma forma de não enfrentar o mundo à sua frente).

Hoje, já adulto, ainda não me acostumei a ver o mundo certinho. Ainda não me sinto totalmente confortável quando estou de óculos. Sei lá, acho lindo observar as pessoas fora de foco, a paisagem se tornar um imenso borrão multicolor. Isso me tranquiliza um pouco. Algumas situações inusitadas inclusive me ajudaram a ter inspiração. Já saltei na estação errada do metrô. Já abracei desconhecidos na rua achando que eram meus melhores amigos de infância. Já pedi sorvete de creme por não conseguir ler a plaquinha do sabor exótico logo ao lado. Tudo isso me impulsiona a criar. No meu caso, só quero ter visão perfeita em três situações: para enxergar o número do ônibus, para analisar detalhadamente o extrato da conta-corrente e para contemplar os olhos da amada.

Ah, tenho um agravante: sou míope, tenho astigmatismo e ainda ando de fone e música alta. Portanto, se você passar por mim e eu não vir, e se você chamar meu nome e eu não ouvir, pense naquele velho bordão do término dos namoros: o problema sou eu, não você.

Pedro Gabriel nasceu em N’Djamena, capital do Chade, em 1984. Filho de pai suíço e mãe brasileira, chegou ao Brasil aos 12 anos — e até os 13 não formulava uma frase completa em português. A partir da dificuldade na adaptação à língua portuguesa, que lhe exigiu muita observação tanto dos sons quanto da grafia das palavras, Pedro desenvolveu talento e sensibilidade raros para brincar com as letras. É formado em publicidade e propaganda pela ESPM-RJ e autor de Eu me chamo Antônio Segundo – Eu me chamo Antônio e Ilustre Poesia.

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Comentários

8 Respostas para “[minha timidez me obriga a tirar os óculos]

  1. E eu pensando ser maluca, por não querer, usar os óculos.

  2. Minha timidez necessita de óculos para encarar o mundo. Leio o mundo por trás de lentes que escondem os trejeitos de timidez do meu olhar. É Antônio, a miopia e o astigmatismo também andam lado a lado comigo.

  3. Sei bem como é. Míope, astigmata e com uma “surdez momentânea”… Só que no meu caso, eu não gosto daquela visão desfocada que a gente tem sem os óculos. Fico perdida. Nisso somos contrários: desde os 7 anos amando os óculos sem problema algum <3

  4. Das vantagens de ser “invisivel”.. Das vantagens de ver um mundo desfocado… Da timidez como aliada… Só poderia ser coisa de artista. Seu mundo é muito lindo Pedro/Antônio. E é lindo exatamente pq vc o vê assim!! #inspirador

  5. Imagina que voce ia ser de todo normal. Também uso óculos, mas nao uso muito. É bem engraçado não enxergar, já passei por algumas situações assim também.
    Ai, precisamos de mais pessoas no mundo como voce <3

  6. É muito bom quando temos a opção de ver o mundo mais nítido com um par de cristais, no entanto, quando essa “liberdade” deixa de ser opcional, aprendemos a enxergar o mundo de outra forma dai percebemos o sentido da frase do Antoine de Saint-Exupéry “O essencial é invisível aos olhos. Só se vê bem com o coração.”
    Obrigado Pedro Gabriel, foi bem emocionante te conhecer.

  7. No meu caso, só quero ter visão perfeita em três situações: para enxergar o número do ônibus, para analisar detalhadamente o extrato da conta-corrente e para contemplar os olhos da amada.
    ameiii ameii magnifico

  8. Caramba, você falou em jogar bolinha de gude e me lembrei da minha infância também, a diferença era que eu queria aprender e meus primos não queriam me ensinar, diziam que era “brincadeira de menino”, é mole?!

    Mas enfim, falando em óculos, também não sei desde quando não enxergo direito, só sei que descobri que era míope por acaso, quando fui à oftalmologista (por conta da minha irmã que sentia muita dor de cabeça e minha mãe achou que poderia ser problema de visão) e a médica virou para nós e perguntou: “como você consegue enxergar?”

    Pois é, me chamavam de nerd por sempre sentar na frente na sala e na verdade eu só não enxergava direito… Mas após muitos anos usando óculos, há um ano fiz cirurgia e não tenho mais miopia nem astigmatismo. Para mim ver claramente é uma nova realidade, mas sinto falta do óculos quando fico nervosa ou sem jeito com alguma coisa, pois tinha mania de arrumar a armação do óculos nessas ocasiões. Afinal, ao contrário de você, desde que descobri que precisava de óculos nunca mais os tirei do rosto, achava que chamaria muito mais atenção se me esbarrasse nos obstáculos, ou pegasse o ônibus errado ou ainda pior, falar com alguém pensando que era outra, kkkk

    Beijos

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