[Escrevo para você que me ensinou a escrever]

Por Pedro Gabriel

15 / outubro / 2013

Ensinar liberta.

Ensinar liberta.

Você me ensinou a escrever. E a ler. E eu escrevia, em letras minúsculas. E eu lia, em voz baixa. Sempre fui tímido, você sabe. Eu só gostava de ouvir, de ouvir, de ouvir. Acho que repetia duas ou três palavras apenas, não mais. Talvez “bonjour, maman”, talvez “nez”, talvez “bouche”, talvez “rouge”. Não sei.

Só sei que, ali, em casa, era a melhor sala de aula do mundo. Era impossível chegar atrasado, afinal, eu dormia a dois quartos da mesa de estudo. Eu nunca era mandado para a sala do diretor por um motivo simples: não havia diretor. Não havia a necessidade de usar uniforme, mas eu andava sempre impecável, o primeiro botão da camisa arrebentado, os cadarços ainda por fazer e o cabelo, bagunçado como se tivesse sido penteado por mãozinhas nervosas (até hoje ele continua assim, descabelado). Mesmo assim, você dizia que eu era o menino mais lindo da sala. E tinha razão. Não havia concorrência. Não havia também os meus aliados para jogar bolinhas de papel molhado na nuca das inimigas da fileira da frente. Aliás, nem havia a menina mais bonita da turma. Minto. Você era a menina mais bonita da turma.

Eu lembro que eu acordava ainda com sono, tomava um copão de leite e sentava ao seu lado. Você, como mãe e não como professora, naquele momento, pedia gentilmente para eu me levantar e escovar os dentes antes do início da aula. E era exatamente o que eu fazia. E voltava, et voilá, a aula podia, enfim, começar. Você dizia coisas que agora eu não vou conseguir lembrar. Acho que era o princípio das coisas: a letra A, o número 0 – que eu achava tão parecido com a barriga do vovô. Eu, mesmo sem saber contar, só contava as horas para o recreio. Não que as aulas fossem infernais, mas naquela idade cada segundo livre tem um quê de paraíso.

No intervalo, eu corria para a rua vazia e imitava aviões: meus braços, pequenos, eram as asas, pequenas. Talvez um ultraleve. Mas ele ia longe, longe, longe, juro! Eu podia tocar o céu e sentir a fofura das nuvens branquinhas, branquinhas, branquinhas. O motor era som que saía da minha boca que ainda aprendia as primeiras letras, os primeiros números. Eu, agora um pássaro metálico, espantava sem medo os lagartos que bronzeavam nas pedras do jardim. Mas eles não se intimidavam. E era eu quem acabava fugindo deles, correndo, voando, com as mesmas pequenas asas, com o mesmo motorzinho bucal. Graças a Deus, Deus não dá asa a lagartos. E eu conseguia escapar e pousar, são e salvo, de novo na minha pequena cadeira com duas almofadas: uma laranja com estampas de máscaras africanas e a outra de uma cor que eu não lembro, talvez invisível. Sim, quando se é criança, o invisível é uma cor tão bonita. Talvez ela tivesse a cor e o formato da minha imaginação. Mas era confortável, não tão confortável quando seu colo, mãe. Mas era confortável.

Hoje, eu aprendi a ler e a escrever. Sou um homem que pode exigir alguma liberdade, mesmo ilusória. E essa liberdade que tanto procuro ainda precisa daquelas pequenas asas para voar, voar, voar para longe e continuar do seu lado, naquela mesma sala de aula, sentado naquela mesma pequena cadeira confortável com duas almofadas, correndo naquele mesmo imenso jardim, espantando aqueles mesmos imensos lagartos, imitando aqueles mesmos pequeninos aviões, querendo alcançar aquele mesmo céu e tocar naquelas nuvens idênticas, fofas, para escrever com aquelas mesmas pequenas mãos: talvez “bonjour, maman”, talvez “nez”, talvez “bouche”, talvez “rouge”, mas, principalmente, obrigado.
(Ela se chama Carmen. Hoje é o Dia do Professor. E foi ela quem me ensinou a ler e a escrever. Obrigado, mãe.)

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Pedro Gabriel nasceu em N’Djamena, capital do Chade, em 1984. Filho de pai suíço e mãe brasileira, chegou ao Brasil aos 12 anos — e até os 13 não formulava uma frase completa em português. A partir da dificuldade na adaptação à língua portuguesa, que lhe exigiu muita observação tanto dos sons quanto da grafia das palavras, Pedro desenvolveu talento e sensibilidade raros para brincar com as letras. É formado em publicidade e propaganda pela ESPM-RJ e autor de Eu me chamo Antônio Segundo – Eu me chamo Antônio e Ilustre Poesia.

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Comentários

18 Respostas para “[Escrevo para você que me ensinou a escrever]

  1. Ele é dono de uma doçura fora do comum! Contando os dias para a publicação de seu livro. 🙂

  2. Belo texto. Bela homenagem. Tenho certeza que a sua mãe morre de orgulho de você. Eu morro.
    Ansiosa pelo livro! Se cuida.

  3. Estou tão encantada quanto um livro de contos de fadas infantil.

  4. Pedro suponho que a Carmen deve ter chorado.Porque eu chorei.Toda a minha admiração e votos de um sucesso imenso.Você merece pelo grande artista que é.Um beijo com muito carinho

  5. Sensibilidade pura. Gosto de pessoas, filmes, músicas e textos sensíveis.
    E os presentes de Natal já foram escolhidos: um livro seu para cada membro da família e amigos queridos.

  6. Quanta, doçura, quanta poesia, “Antonio”…

  7. Antônio… Pedro… Gabriel… você é tantos em um só… Parabéns pela estreia!!! A cada dia me encanta mais… sucesso!!!

  8. Ela deve estar orgulhosa com a sua sensibilidade ímpar. E nós, seguidores, cheios de suspiros e elogios. Você ainda vai muito mais longe do que já foi. E merecidamente.

  9. Suas palavras fazem hoje parte dos meus sonhos. Ansiosa para ter em mãos o primeiro dos muitos livros que terás.!

  10. Imagina o orgulho que dona Carmen tem do filho?!
    Belo texto!

  11. Tenho muita afinidade e simpatia por seus escritos; não é à toa, foi paixão à primeira vista…. Meu nome é Maria do Carmo, mas também me chamam de Carmem, Carmencita, Carminha…. E o Nome do meu único filho é Gabriel Angelo, que também poderia ter sido Paulo Gabriel…. Belas coincidências, já que fui me tornando sua Fã e admiradora! Certamente terei o seu Livro, mas por favor, não nos deixe sem essas gotas de poesia que você , diariamente , irriga nossos pensamentos e sentimentos… Fico imensamente feliz pelo seu sucesso.

  12. Prazer Antônio, digo…Pedro!! Muito pouca idade pra tanto conhecimento. Só soube mais de você visitando esta página. Estou extasiada, boquiaberta, e muito feliz, por tanta capacidade. Parabéns!! Que venha logo o seu livro; Terei muito prazer em adquiri-lo.

  13. Sabe, mandei esse texto para minha mãe e ela chorou de tanta emoção. E eu? Chorei junto *-*
    Antônio (me acostumei a te chamar assim por causa da página) você é encantador. Te admiro!

  14. Amor à primeira vista? Acho que é pouco pra falar como eu me senti quando li um de seus guardanapos, que guardanapos que nada, são verdadeiras obras-primas. Parabéns Pedro…Gabriel…Antônio. Que venha logo o dia 21!

  15. Sem dúvida lágrimas rolaram quando li esse texto. Que linda declaração de amor! Embora minha mãe seja professora, hoje aposentada, nunca estudei diretamente com ela em uma sala de aula, mas lembro-me com clareza de como me ajudava a fazer as lições de casa, me ensinando as letras, a contar usando coroços de feijão a “fazer as contas de sobe 1”, enfim, me identifiquei totalmente com esse texto Pedro. Parabéns!

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