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Galeria: os personagens de Sal

8 / agosto / 2013

Diversas vozes, sob perspectivas diferentes, se entrelaçam para compor Sal, o novo romance de Leticia Wierzchowski. Para apresentar os personagens aos leitores, a premiada escritora gaúcha delegou a eles a tarefa de descrever cada um de seus pares. Confira abaixo a galeria com todos os perfis, que foram publicados semanalmente aqui no Blog da Intrínseca.

Ivan, por Cecília

Uma mulher pode amar um único homem durante a vida inteira, amá-lo do começo ao fim dos seus dias e, no entanto, perdê-lo na esteira dos anos; perder-se dele, lenta e silenciosamente como a areia escoa num daqueles relógios antigos. Homem e mulher na mesma casa, anos a fio, entre fraldas e mamadeiras, risos e choros, tombos e arrependimentos, noites de tormenta, naufrágios, sopa quente em tigelas de porcelana, achas de lenha ardendo no fogão, o pó acumulando-se traiçoeiramente entre os livros na estante, o vento lá fora… Bem, essas são as armadilhas de um casamento. [Continue lendo]

 
Orfeu, por Ivan

O passado resolveu-se para mim com o nascimento de Lucas. De repente, eu estava quite com a vida. Lucas era tão parecido comigo — mesmo quando pequeno, semente do homem no qual se transformaria, eu podia perceber a semelhança entre nós. Lucas pensava como eu, e era fácil para mim entendê-lo e aceitá-lo.

Mas Orfeu? De que lira nasceu a inquebrantável voz de Orfeu? De que palheta as cores do seu rosto? Andando por La Duiva como um elfo, uma criatura mágica e misteriosa iluminada por um sol particular, Orfeu parecia saído das páginas de um livro.[Continue lendo]

 
Julius Templeman, por Orfeu

Eu esperei.
Solenemente, por meses a fio, anos inteiros, eu esperei. De peito aberto, jovem e ansioso, deixei-me ficar lá na praia, olhando o mar. Sentado na areia, o sol quente mordendo a minha pele, todo aquele verde, o azul e o branco, a praia dentro de mim como uma música — ficava lá, esperando. De modo que não é estranho que realmente eu estivesse lá quando ele chegou.

Seu nome era Julius Templeman. Chegara de muito longe e não trazia muita coisa consigo, apenas um livro lido e relido, cuja autora — que vinha a ser Flora, minha irmã — ele procurava.[Continue lendo]

Flora, por Julius

Sou sua personagem, de uma certa forma. Inventando-me em seu livro, Flora alinhava nossas vidas, a realidade da sua vida e da minha naquele outro espaço, naquele outro plano, a ficção.

O que eu nunca saberei é de que modo uma coisa se derramou na outra… O fato é que atravessei meio mundo, de Londres até Oedivetnom e depois até La Duiva para conhecê-la. Flora Godoy, a escritora inédita, a moça que escrevera O livro. Ela sabia usar as palavras, sabia mesmo.[Continue lendo]  

 

Tiberius, por Flora

Tiberius. Um nome curioso — meus pais pareciam gostar disso, de escolher nomes exóticos. Não era bem uma tendência, pois temos Lucas e temos Eva, que vem a ser o nome mais clássico do mundo, mas era como um vento que soprava às vezes e sacudia tudo: Julieta, a jovem apaixonada de Shakespeare, e Orfeu, o argonauta. Assim tivemos também Tiberius, o imperador romano. Dizem os livros que ele foi um grande general, um estrategista. Tristissimus Hominum, assim chamou-o Plínio, o Velho. O mais triste dos homens.[Continue lendo]

 

Lucas, por Tiberius

Meu irmão mais velho. Sempre ao lado do papai. Entendia de barcos, de ventos e de tormentas. Às vezes, era como se o pai falasse pela boca do Lucas. Os dois eram tão parecidos que tinham o mesmo riso.

Lucas deixou a infância cedo e drasticamente, crescendo com uma faina que espantava mamãe, sempre às voltas com as bainhas das suas calças. Tinha um tipo de beleza máscula, um tantinho mal-acabada, que fazia com que as mulheres se inquietassem nas cadeiras quando começavam as danças na quermesse e meu irmão Lucas escolhia seu par. [Continue lendo]

 

Eva, por Lucas

Às vezes, quando estou no Auguste, aparece alguma passageira como Eva. Não parecida com Eva, mas como ela… Falo desse tipo de mulheres que emana uma vibração, uma energia — é quase como se tivessem um cheiro próprio, um odor que despertasse certos instintos e glândulas. Portanto, às vezes, alguma dessas fêmeas entra no Augustepara um passeio, e então a recordação dela bate em cheio em mim, como um tapa na cara.

Como Eva, todas essas mulheres têm aquele olhar lânguido e, onde passam, uma esteira de homens põe-se a suspirar. É claro que alguns, os mais afoitos, vão atrás em busca de uma chance. [Continue lendo]

Julieta, por Eva


Julieta Godoy, morta aos vinte e um anos. Um acidente no parto e a segunda criança de Cecília teve uma existência triste, eterna vítima daqueles segundos sem oxigenação que danificaram seu pequeno cérebro, estraçalhando seu futuro. Não mentirei por aqui — quando vocês lerem o livro, saberão que sou implacável, mas eu diria que sempre fui apenas sincera. O mundo desaprendeu a sinceridade, e todos andam por aí aos salamaleques e sorrisos, uns bobos da corte que pelas costas alheias fazem as mesmas intrigas shakespearianas de sempre. Eu não. Eu dou o tapa e mostro a mão — esta mão onde Leon colocou uma grossa aliança de ouro quando me levou embora de La Duiva para sempre.[Continue lendo]

Doña, por Julieta

“Você morre no final, Julieta. É assim que eu ganho.” A velha falava sempre isso. Parada ao lado da minha cama à noite, a velha falava. Tínhamos tempo, ela e eu, todo o tempo do mundo. A doença e a morte são duas eternidades.“Você morre no final, Julieta. É assim que eu ganho.” A velha repetia e eu gritava.

Tarde da noite, eu gritava, gritava. No escuro. Sozinha. Demorava muito até que acendessem a luz, e era sempre mamãe. “Não grite, Julieta”, ela pedia. [Continue lendo]

 

Ernest, por Doña

Preto safado. Desde o começo, eu sempre soube. Não queria o Ernest lá. Sempre atrás do Evandro para cima e para baixo, era sim senhor, não senhor, mas ele tinha um jeito de olhar, um jeito! Tinha uns olhos desrespeitosos, escrutinadores, brilhantes. Era como se o Ernest levasse o farol dentro dos olhos!

Depois que o meu filho cresceu, vivia atrás daquele preto. Não sei o que o Ivan via nele. Eu reclamava, mas o marido dizia, Deixa eles. [Continue lendo]

 

Cecília, por Tobias

Cecília, era o seu nome. Ela chegou em La Duiva ainda usando meias grossas de menina e os cabelos atados numa trança. Cresceu rápido e virou uma mulher bonita. Eu não me surpreendi quando meu contaram que Ivan, o filho de don Evandro, estava apaixonado por ela, a empregada da casa. Não porque os Godoy vivessem naquela ilha, meio retirados do mundo, mas porque a beleza da moça era de chamar a atenção mesmo em cidade grande.  Imagina os dois lá, tão jovens e todo aquele sangue correndo nas veias… Foi dito e feito. Logo, estavam juntos, e o velho enterrado sob sete palmos de terra.[Continue lendo]

 

Tobias, por Ernest

Ele era um barqueiro, diria Ivan, que sempre foi tão pragmático. Para Flora, Tobias era um personagem como todos nós. Eu, que sempre gostei de histórias, que nunca tive dinheiro no banco ou moradia própria, mas que podia declamar Shakespeare e Donne e conhecia Plínio e deliciava-me com Homero — eu, a cada vez que penso no Tobias, penso no barqueiro de Hades, o velho Caronte.

Tiberius, apaixonado por astronomia, diria que Caronte era o satélite natural de Plutão. Eu digo que Tobias era o nosso Caronte. [Continue lendo]

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