Flora, por Julius

7 / junho / 2013

Nas próximas semanas, Letícia Wierzchowski apresentará, com exclusividade para o Blog da Intrínseca, alguns dos personagens de Sal, romance que será publicado em julho.

Sou sua personagem, de uma certa forma. Inventando-me em seu livro, Flora alinhava nossas vidas, a realidade da sua vida e da minha naquele outro espaço, naquele outro plano, a ficção.

O que eu nunca saberei é de que modo uma coisa se derramou na outra… O fato é que atravessei meio mundo, de Londres até Oedivetnom e depois até La Duiva para conhecê-la. Flora Godoy, a escritora inédita, a moça que escrevera O livro. Ela sabia usar as palavras, sabia mesmo.

Como era Flora? Era alta, tinha belos olhos, a tez dourada. A boca larga, de lábios finos, abria-se num belo sorriso. Quando estava amuada, seu narizinho se arrebitava. Flora tinha lindos peitos, longas pernas. Falava pouco, lia muito. Seria uma excelente aluna, e eu teria me apaixonado se a tivesse conhecido em Oxford, entregado-me a ela com docilidade: quase posso vê-la jogada no sofá de veludo do meu apartamento, os cabelos soltos caindo-lhe pelas costas, descalça (depois da infância em La Duiva, Flora nunca aprenderia a gostar de sapatos), mastigando uma maçã sem importar-se com o sumo que lhe escorria pelo canto da boca, lendo Dickens enquanto me espera voltar das aulas na universidade.

Mas as coisas aconteceram de maneira bem diferente. E aconteceram em La Duiva… La Duiva foi como um antídoto — ou terá sido o próprio veneno? É claro que eu me angustiei, andei suspirando pelos dias, bebendo espanto e mastigando medo enquanto fazia tudo de um outro jeito, de um modo absolutamente novo, sentindo tudo de modo diverso e, sendo eu mesmo, já era completamente outro. Aquele eu cujos passos apressados ecoavam diariamente pelos corredores da universidade teria amado Flora com loucura, mas tudo isso deixou de existir para todo sempre. Sobrou apenas este Julius: bronzeado de sol, trajando camisetas e se embebedando de vinho e de poemas, cruzando o mundo atrás do sonho de Orfeu: um verão eterno.

Flora ficou em La Duiva. Não sei o que foi feito dela, mas merecia coisas grandes: era amável e inteligente e uma narradora genial. Para além do ponto final do livro que ela escreveu, no entanto, a vida tinha curiosos planos para todos nós.

Leticia Wierzchowski assina uma coluna semanal no blog da Intrínseca.
Nascida em Porto Alegre, Leticia estreou na literatura aos 26 anos e publicou 11 romances e novelas e uma antologia de crônicas, além de cinco livros infantis e infantojuvenis. Seu romance mais conhecido é A casa das sete mulheres, história que inspirou a série homônima produzida pela Rede Globo e exibida em 30 países.

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Comentários

Uma resposta para “Flora, por Julius

  1. texto doce, que te envolve em um afago gostoso de ler… Parabéns.

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