Orfeu, por Ivan

Por Leticia Wierzchowski

24 / maio / 2013


Nas próximas semanas, Letícia Wierzchowski apresentará, com exclusividade para o Blog da Intrínseca, alguns dos personagens de Sal, romance que será publicado em julho.

O passado resolveu-se para mim com o nascimento de Lucas. De repente, eu estava quite com a vida. Lucas era tão parecido comigo — mesmo quando pequeno, semente do homem no qual se transformaria, eu podia perceber a semelhança entre nós. Lucas pensava como eu, e era fácil para mim entendê-lo e aceitá-lo.

Mas Orfeu? De que lira nasceu a inquebrantável voz de Orfeu? De que palheta as cores do seu rosto? Andando por La Duiva como um elfo, uma criatura mágica e misteriosa iluminada por um sol particular, Orfeu parecia saído das páginas de um livro. Orfeu e seu caderno de desenhos, ele mesmo tão irreal como uma aquarela. Orfeu e seus sorrisos, os poemas que deixava escapar dos seus lábios suspirantes.

Sempre tive um certo temor de Orfeu. Não dele, do meu filho… Mas medo do que Orfeu seria capaz de fazer para estar à altura daquela coisa toda que se adensava ao seu redor. Como um ator na coxia esperando para entrar no palco, capaz de qualquer coisa para ouvir os aplausos da plateia.

E foi assim que a vida me mostrou que nada viria a ser tão fácil como parecia… Não estava tudo resolvido para os Godoy de La Duiva. Talvez Lucas tivesse mesmo nascido para o farol, como sucedera comigo: eu tinha assumido com alegria as responsabilidades que outrora cabiam ao meu pai. Mas Orfeu – e em outra medida Flora, Eva e Tiberius — bem, eles eram as variantes insondáveis do amanhã.

Desde o primeiro momento, eu soube que seria Orfeu quem abriria a caixa de Pandora do futuro. Havia alguma coisa nele, dentro dos seus olhos, uma vontade insaciável, uma curiosidade em tudo, coisas grandes e pequenas — o jeito como Orfeu olhava as pessoas, vasculhando-as sem pudor: gestos, palavras, silêncios — ele estava sempre atento. Não era tão óbvio, é claro. Apenas alguns podiam notar essa fome de Orfeu. Atrás do seu caderno de desenhos, andando pela praia como um náufrago sozinho num mundo perdido, ele disfarçava bem. Parecia aluado, um rapazinho bonito e distraído, um pouco exótico. Orfeu era viril ao seu modo, com aquele corpo rijo e esguio e flexível que ele tinha. As garotas da vila o queriam, mas ele parecia desinteressado demais de tudo que fosse simples ou fácil. Talvez uma moça da cidade, eu pensava, de Oedivetnom ou da Europa. Nesse tempo, ninguém ouvira falar ainda no professor Julius Templeman…

Orfeu, Orfeu… Eu gostaria de ter conversado com você, conversado honestamente. Ao menos uma única vez. Mas foi mais fácil para mim fechar os olhos àquilo que eu não podia compreender ou mensurar. Assim, o tempo passou à deriva de nós dois. O tempo, esse fio que Cecília trama com as suas agulhas. E agora que me pedem para descrevê-lo, eu gasto todas essas linhas dando voltas em torno dessa minha dor tão grande… Desse meu arrependimento.

Como você era, Orfeu? Era bonito, bonito demais. Era corajoso, era gentil. As árvores se curvavam à sua passagem. Desde sempre, eu soube que La Duiva seria pequena demais para você.

Orfeu, o terceiro filho da minha carne, aquele que ganhou o nome do argonauta que, com a sua voz, apaziguava os mares e neutralizava o temível canto enfeitiçado das sereias.

Leticia Wierzchowski assina uma coluna semanal no blog da Intrínseca.
Nascida em Porto Alegre, Leticia estreou na literatura aos 26 anos e publicou 11 romances e novelas e uma antologia de crônicas, além de cinco livros infantis e infantojuvenis. Seu romance mais conhecido é A casa das sete mulheres, história que inspirou a série homônima produzida pela Rede Globo e exibida em 30 países.

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Leticia Wierzchowski nasceu em Porto Alegre e estreou na literatura aos 26 anos. Já publicou 11 romances e novelas e uma antologia de crônicas, além de cinco livros infantis e infantojuvenis. É autora de SalNavegue a lágrima e de A casa das sete mulheres, história que inspirou a série homônima produzida pela Rede Globo e exibida em 30 países.
Leticia escreve às sextas.

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